Em O ocaso da vanguarda, Octavio Paz percebe e aponta semelhanças entre o romantismo e a vanguarda, considerando ambos “movimentos juvenis”, “rebeliões contra a razão, suas construções e seus valores”, além de afirmarem que “o corpo, suas paixões e suas visões – erotismo, sonho, inspiração – ocupam lugar primordial” e de serem “tentativas de destruir a realidade visível para achar ou inventar outra – mágica, sobrenatural, super-real”.[1] Além disso, em ambos a modernidade se afirma e, ao mesmo tempo, busca sua anulação. Conforme Paz, futuristas, dadaístas e surrealistas sabiam que a negação que faziam do romantismo era um ato romântico que se inscrevia na mesma tradição que concebera o até então visto como inimigo.
A principal semelhança entre os dois movimentos é sua pretensão de unir vida e arte, com a ambição de transformar a realidade, nem que para isso desvirtuar a política vigente e a percepção de mundo generalizada. E ambos o fazem através, sobretudo, da ironia, o que vai reverberar significativamente na poesia francesa que se inicia com Charles Baudelaire, autor do clássico As flores do mal. O fim do tempo linear se estabelece ainda mais com a inclusão de Arthur Rimbaud, que “quer mudar a poesia para mudar a vida”, e do mestre Stéphane Mallarmé. Sem eles, não existiriam Guillaume Apollinaire ou Paul Valéry. As Iluminuras e Uma temporada no inferno, ambos de Rimbaud, mostram essa “alquimia do verbo” que encantava tanto a geração romântica quanto a geração simbolista, sua continuação no plano literário, já às portas da modernidade e das vanguardas.
A resposta moderna ao extremo não viria com Rimbaud, que se reservou ao próprio silêncio, depois de perambular por desertos africanos traficando armas, mas com Mallarmé, que busca, nas palavras de Paz, a “convergência de todos os momentos em que possa desprender-se um ato puro: o poema”.[2] Este poema é Un coup de dés jamais n'abolira le hasard, com os “dados lançados em circunstâncias eternas”, que oferece uma “realidade contraditória porque, sendo um ato, é também um não-ato”.[3]
A partir deste ponto, pode-se concordar ainda mais com a proposição de Paz, de que “a vanguarda é uma intensificação da estética de mudança, inaugurada pelo Romantismo”. As primeiras manifestações da vanguarda foram, como observa Paz, cosmopolitas e poliglotas.[4] Thomas F. Marinetti, criador do futurismo, por exemplo, escreveu seus manifestos em francês e foi polemizar em Moscou e em São Petersburgo com os cubofuturistas russos.[5]
Alguns dos autores, no Brasil, ligados ao conceito de vanguarda tem datas significativas em 2009: João Cabral (1920-1999) e Paulo Leminski (1944-1989) se fazem ausentes 10 e 20 anos, respectivamente; Haroldo de Campos (1929-2003) completaria 80 anos; e Augusto de Campos (1931) tem a comemoração dos 30 anos de Viva vaia: poesia 1949-1979. Para Antoine Compagnon, adições como qual a pertinência da literatura para a vida ou qual sua força, “não somente de prazer, mas também de conhecimento, não somente de evasão, mas também de ação” se “tornaram mais imperiosas depois das vanguardas, quando a fé no progresso fez uma pausa”. Afirma ele: “Que se tenha sido a favor ou contra ela, essa fé determinou o movimento da modernidade: a literatura era conduzida pelo projeto de ir sempre além, seguindo um impulso que, com as vanguardas, tomou a forma do ‘sempre menos’: purificação do romance e da poesia, concentração de cada gênero em si mesmo, redução de cada medium à sua essência”.[6] Esses autores foram cercados por essa idéia de impulso, que tomou a forma do “sempre menos”, ou da “poesia menos”, como a de Augusto de Campos. E esses autores também tiveram contato entre si, apesar de mútuas discordâncias, mostrando a ligação da vida com a obra.
Se João Cabral representou um exemplo para os irmãos Campos, no sentido de uma poesia rigorosa, sobretudo esses foram exemplo para Paulo Leminski. Obviamente distanciados por uma geração (entre Cabral e irmãos Campos e irmãos Campos e Leminski), esses autores tiveram em comum o rótulo de vanguardistas. Talvez o único que tenha se mantido mais próximo de vanguarda seja Augusto de Campos: Haroldo falaria, a partir dos anos 1980, numa poesia pós-utópica, aproximando-se de um “neobarroco concreto”, mas afastado um tanto da utopia vanguardista do seu irmão “siamesmo” – que veria no irmão o “arco-íris solar”; Leminski se mostraria desconfiado com os conceitos de vanguarda, a partir dos anos 1970; e João Cabral mesmo escreveria a Augusto que não pôde ser “de seu lado”. João Cabral, como diplomata, trabalhou em algumas capitais pelo planeta, e Haroldo também foi um viajante, no sentido mais acadêmico (tendo dado aulas no exterior, como nos Estados Unidos). Augusto e Leminski, por sua vez, eram mais arraigados em suas cidades; Augusto em São Paulo; Leminski, em Curitiba, depois em São Paulo. Cosmopolitas e provincianos ao mesmo tempo, os irmãos Campos viajaram, em matéria de línguas, muito mais do que João Cabral, e Leminski seguiu viagem sobretudo à mitologia greco-latina e aos Estados Unidos de Ferlinghetti e romancistas. Como os irmãos Campos, traduziu Joyce e admirava sobretudo Mallarmé, além de Rimbaud – ambos com menos eco em João Cabral, mais afeito a uma poesia estruturada em quadras, de Guillén e Valéry, menos voltada ao cubofuturismo e à tradição de som e palavra mesclados.
Augusto e Haroldo de Campos trocariam cartas com João Cabral logo após a eclosão da poesia concreta, insinuando uma aproximação a Cabral, demonstrada através de seus textos iniciais, tomando-o como precursor do que faziam. Em um texto sobre o João Cabral, “O geômetra engajado”, Haroldo de Campos diz que ele tinha um “lugar privilegiado: o lugar cartesiano da lucidez mais extrema”.[7] No entanto, Cabral não pode ser visto como antecessor do poema objetivo, conciso e matemático, próprio da poesia concreta, embora tenha pontos de contato exemplares: o desejo de compor uma poesia crítica, ligando-a aos campos da arquitetura e da pintura. A poesia de João Cabral, ao mesmo tempo em que concentra a matéria em seus versos, em cada palavra de seus poemas, dá a sensação de fixar rótulos às coisas que a cercam – para o matemático Ludwig Wittgenstein, rotular é dar nome às coisas – consegue afastá-las: as palavras se realizam não por uma sintaxe analógica (própria da poesia concreta) nem por uma concisão, mas por uma sintaxe continuada pela quebra constante do verso e do pensamento, para retomá-lo em outra direção e pela expansão objetiva. A poesia concreta ortodoxa, inserindo os signos numa ordem plástica, não adentrava no imaginário de cada objeto como faz Cabral. Para João Alexandre Barbosa, a abstração cabralina não seria o contrário do concreto, “mas a estratégia por intermédio da qual é possível retornar, pela linguagem, ao núcleo, ao concreto, das coisas e do homem”.[8] Por isso, embora seja vista, pelo próprio poeta, como uma poesia antimusical, dura, suas raízes crescem exatamente da musicalidade, marcada, então, pela concretude da escritura. Em carta de 22 de janeiro de 1957, em resposta a uma carta de Augusto (resposta esta dirigida a todo grupo Noigandres), Cabral, como lembra Haroldo de Campos, “depois de manifestar seu apreço pelo movimento da poesia concreta e de fazer considerações sobre a predileção pelo ideograma-quadro, que lhe parecia existir da parte do grupo concreto”, escreveu: “Não participo da aversão que vocês sentem pelo verso: isto é, pela frase, pelo discurso. Não creio que a retórica, por pior que seja, tenha o poder de corromper este aspecto da linguagem e do uso possível: o discursivo. O que é possível é introduzir no discurso a preocupação com a estrutura”[9] (observação parecida àquela que Octavio Paz faria do movimento, em carta a Haroldo). Diante dessas observações, os preceitos para a inclusão cabralina nos nomes da teoria concretista – “linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso” – não acompanham, pelo menos como aparenta na poesia concreta, o objetivo do poeta.
(Leiam o ensaio João Cabral, Irmãos Campos, Leminski: Diálogos, de André Dick, na íntegra, na próxima edição da Zunái.)
[1] PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 133.
[2] Ibidem, p. 144.[3] Ibidem, p. 144.
[4] Ibidem, p. 148.
[5] Ibidem, p. 148.
[6] COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê?, Trad. Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009, p. 24-25.
[7] CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 88.
[8] BARBOSA, João Alexandre. A imitação da forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Duas Cidades, 1975, p. 185.
[9] MELO NETO, João Cabral de apud CAMPOS, Haroldo de. João Cabral: un testimonio. Continente Sul/Sur (Revista do Instituto Estadual do Livro). Porto Alegre, n. 3, dez. 1996, p. 127-128.
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