quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

UMA CONVERSA COM JORGE MELÍCIAS

Zunái: Por pensar em poesia, o que significa ser poeta no globo de hoje?

Jorge Melícias: Adorno escreve, na sua Teoria Estética que “a verdade é a antítese da sociedade existente”. Nesta perspectiva a função de toda a arte terá de ser sempre a de “empenhada negação do status quo.” A poesia torna-nos conscientes de certas questões como as da autoridade e da convenção, não para as fazer desaparecer (o que seria de todo impossível), mas para as reconfigurar: sendo que a desfiguração é um pré-requisito necessário à reconfiguração, à regeneração da capacidade de figurar ou de pensar figurativamente. Ela deverá ser sempre essa aversão à conformidade (num permanente processo de fuga à regra), uma constante procura de uma dinâmica a um tempo centrípeta e centrífuga. Não existem padrões de estética e cultura universais. Assim sendo também o multiculturalismo (neste irreversível processo de globalização, onde a cultura anglo-americana é hegemónica e determina os modelos culturais vigentes) enferma do mesmo não-sentido. Redobra, pois, de acuidade a questão do poder da linguagem, cabendo à poesia ir ao encontro do que a ideologia dominante coloca fora da linguagem. Pede-se à poesia uma espécie de “guerrilha”, que abra fendas no bem urdido tecido do senso-comum e da mera e rasa repetição. Só nesta dialéctica e/ou confronto da poesia com a ideologia (até porque não há poesia fora da ideologia. A poesia terá sempre ideologia, o que não significa que seja, necessariamente, ideológica) se poderão mudar os mapas da linguagem e, fundamentadamente, questionar as formas de representação da sociedade e do mundo.

Zunái: Para ficar em três nomes – Luís de Camões, Fernando Pessoa, Herberto Helder – ainda é possível produzir uma poética seminal frente ao lirismo de agora?

Jorge Melícias: Como já defendi em diversas ocasiões, o poema tem vindo a aproximar-se perigosamente do lugar da não-tensão, da razia mais ostensiva. Essa intensidade, resultante do choque dialogante entre conteúdo e forma foi, abruptamente, substituída por uma ligeireza conceptual que está aí para fazer escola. A uma poesia de força que intente, por uma árdua oficina, qualquer tipo de ruptura, sobrepôs-se uma estética do comezinho. E esse quotidiano, mais que um ponto de partida, parece ter-se fechado, irremediavelmente, sobre si mesmo, ganhando com isso contornos de alvará e arrogâncias de lei. E isto é válido tanto para uma poesia mais assumidamente ligada à memória e ao confessional como para esse revivalismo realista, com laivos de segurança social, que por estes dias grassa no panorama literário.

Mas para responder directamente à pergunta acredito que sim, que essa poética de excelência é, não só possível, como absolutamente necessária. Como defende Charles Bernstein “qualquer coisa será preferível à epifania bem-escrita da métrica previsível”.

Zunái: Sendo da Cosmorama Edições, que poéticas brasileiras são de interesse da coleção de poesia da editora?

Jorge Melícias: Tendo o Brasil geografia a mais isso reflecte-se, necessariamente, na pluralidade de vozes que constituem o espectro da poesia brasileira contemporânea. Por essa mesma razão não pretendemos confinar as apostas da editora ao eixo Rio-S. Paulo. Se aí podemos encontrar autores de grande interesse como Claudio Daniel (que abriu com o seu Escrito em Osso a edição de poesia brasileira da Cosmorama), Horácio Costa (que editaremos, estou crente, em breve) ou uma jovem poeta chamada Camila Vardarac, a verdade é que noutras latitudes esse interesse não esmorece: Wilmar Silva (de quem publicámos Yguarani) ou Ricardo Corona (que verá, já em Outubro, sair o seu livro amphibia), Ronald Augusto ou Franz Cecim, são nomes que, paulatinamente, queremos ver mais conhecidos em Portugal.

Zunái: Se a língua é um animal em metamorfose, o que pensa sobre o acordo ortográfico da língua portuguesa?

Jorge Melícias: Precisamente porque acredito que a língua é um animal em metamorfose é que não concordo com a tentativa de adestração política e económica que constitui o acordo ortográfico. Já Teixeira de Pascoaes, a propósito da reforma ortográfica de 1911, mostrava o seu pesar em relação ao desaparecimento do “y” em “abysmo” e em “lyrio (o “y” daria, segundo Pascoaes, a ideia de profundidade a “abysmo” e a ideia de elegância a “lyrio”). Não vou tão longe como Pascoaes ao defender a obliteração de sentido que a supressão do “y” então acarretou mas que, gráfica e imageticamente, algo se perdeu parece-me indiscutível. A verdade é que a grafia nunca se constituiu como verdadeiro entrave à plena fluência do português escrito, tanto por parte de leitores portugueses de obras em português do Brasil como em relação à situação inversa. Também com os restantes países de língua oficial portuguesa estou em crer que o ênfase não deva ser posto aí. Separam-nos muito mais depressa questões lexicais ou de semântica que questões gráficas, mas nunca ninguém teve a brilhante ideia de suprimir fauna ou flora que não fossem comuns a todos os falantes de português. Heureusement!!! A excelência só existe na excepção e como defende o autor de A-Poética “À igualdade quando a diferença nos descrimina prefiro sempre a diferença quando a igualdade nos anula.”

Zunái: Você também é tradutor, o que pensa sobre a língua portuguesa que se fala no Brasil se comparada ao português de Portugal?

Jorge Melícias: É onde actualmente a vertente plástica da língua portuguesa se revela em toda a sua riqueza. Para isso concorre a vastidão geográfica do próprio Brasil, o grau e a variedade de influências a que um território dessas dimensões está sujeito, quer interna quer externamente, e, obviamente, a longa tradição de notáveis estetas linguísticos em que o Brasil é e sempre foi pródiga e de que Guimarães Rosa e Manoel de Barros são apenas dois exemplos.
(Leiam a entrevista na íntegra com o poeta, tradutor e editor português Jorge Melícias na edição de dezembro da Zunái, que estará on line nos próximos dias.)

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