Bruna Fontes Ferraz
Italo Calvino é conhecido por livros que pendem para o fantástico, como As cidades invisíveis e O castelo dos destinos cruzados. No entanto, qualquer efeito ou fato estranho, como o fantástico, o realismo mágico ou o real maravilhoso, surgiriam como algo espontâneo na estruturação da narrativa calviniana. O escritor italiano tece a sua narrativa privilegiando a combinatória, a ordem, as simetrias (mesmo que sejam simetrias entre contrastes), sem preocupar-se em definir as suas obras, pois ela supera qualquer categoria, em tramas que podem muito bem misturar eventos históricos – comprováveis – com intrigas criadas pelo próprio escritor. Esse contraste entre o real e o ficcional não define a narrativa calviniana, mas, pelo contrário, a diferencia, incluindo-a numa literatura que basta por si só; assim ele se recusa a explicar certos acontecimentos, como um visconde partido ao meio ou uma armadura metálica, que se tornam naturais aos personagens e ao leitor.
Segundo Calvino os fatos estranhos, fantásticos surgem da combinação e simetrias utilizadas para a estruturação da narrativa:
Deixo para os críticos a tarefa de colocar meus romances e narrativas em uma classificação do fantástico. O que para mim está no centro da narração não é a explicação de um fato estranho, mas a ordem que esse fato estranho desenvolve em si e em torno de si: o desenho, a simetria, a rede de imagens que se depositam em torno desse fato, como uma formação de um cristal[1]. (CALVINO, 1984, p. 62)
Através da linguagem e das várias possibilidades de “jogos” que ela permite desenvolver, Calvino integrou, em suas obras, segundo a estética blanchotiana, uma “experiência total”, rompendo com paradigmas da experiência do real e do possível, para ultrapassar os limites do inexistente, do fantástico. A literatura calviniana teria, então, por finalidade ser ela mesma.
A obra de Calvino pertence à linha das pesquisas do OULIPO - Ouvroir de Littérature Potentielle -, que nasceu na França em 1960 causando uma completa revolução quanto aos modos de pensar e de escrever literatura. Tal abordagem lingüístico-literária é observada no “estilo” calviniano de fazer literatura, ao encarar a linguagem como um jogo combinatório. Segundo Alencar & Moraes, “De fato, os oulipianos afirmam que toda literatura resulta da combinatória de um número finito de objetos, dispostos de um modo que respeita certas normas, tratando-se, segundo eles, de uma questão de configuração” (ALENCAR & MORAES, 2005, p. 21-22).
Inspirado por essa lógica do jogo combinatório, em Assunto encerrado, Calvino propõe uma máquina que produzisse literatura, “servindo a uma necessidade tipicamente humana: a produção da desordem” (CALVINO, 2006, p. 204). Seria uma máquina de narrar que expressasse a reversibilidade entre o real e o fantástico, o lógico e o ilógico, a consistência e o insólito – essa ambiguidade que configura o humano, num movimento constante de remissão de uns a outros.
Diante destas considerações, objetivamos refletir sobre a máquina narrativa calviniana articulada aos conceitos de fantástico, real maravilhoso e realismo mágico propostos por Seymour Menton em seu livro La verdadera historia del realismo mágico. Nosso estudo consistirá, pois, numa leitura da trilogia Os nossos antepassados, formada pelos livros O visconde partido ao meio (1951), O barão nas árvores (1957) e O cavaleiro inexistente (1959).
Ao longo da análise, vamos verificar se estas três categorias estão presentes nos três livros. Para tal, consideraremos: a) os três protagonistas das narrativas, a saber: um visconde partido ao meio, um barão que decide morar nas árvores e um cavaleiro inexistente; b) a presença de narradores enigmáticos; c) a relação do leitor efetivando o potencial fantástico das três narrativas em questão, d) e o modo como Calvino cria o maravilhoso em Os nossos antepassados, de maneira tal que tanto os personagens históricos quanto os personagens fantásticos passariam a fazer parte do folclore italiano.
Seymour Menton, de forma simplificada, distingue o fantástico como “quando os acontecimentos ou os personagens violam as leis físicas do universo” (MENTON, 1998, p. 30). Assim sendo, em Calvino fatos inverossímeis classificam-se nessa categoria, como, por exemplo, uma armadura que se comporta como ser humano e um visconde que sobrevive mesmo que partido ao meio. Por sua vez, o real maravilhoso – termo criado por Alejo Carpentier - reúne “os elementos fantásticos que têm uma base folclórica com predomínio da cultura indígena e africana” (MENTON, 1998, p. 30). Nota-se o caráter lendário e cultural que permeia o termo criado por Carpentier: “No entanto, o realismo mágico em qualquer país do mundo, destaca os elementos improváveis, inesperados, assombrosos MAS reais no mundo real.” (MENTON, 1998, p. 30). O realismo mágico, por mais inusitado que seja certo acontecimento, pode existir, não contrariando as leis empíricas, mas mantém-se como algo extraordinário, pela sua improbabilidade de acontecer.
Após esta breve introdução, passaremos à apresentação de uma leitura das obras calvinianas citadas acima. Nesta leitura remeteremos a alguns pontos que podem ser considerados como elementos da literatura fantástica presentes nessas narrativas.
A obra O visconde partido ao meio é uma narrativa cujo tema é inusitado e que tem como intuito o divertimento. Esse livro aborda o tema do homem cortado em dois após participar da guerra entre cristãos e turcos no século XVII. O visconde Medardo di Terralba sobrevive mesmo partido verticalmente ao meio: uma metade - a direita - é excessivamente má, enquanto que a outra metade - a esquerda - é insuportavelmente boa.
Tal fato pode ser considerado como uma alegoria do homem contemporâneo que se sente, muitas vezes, incompleto, mutilado, “partido ao meio”. Além disso, a diferenciação das duas metades, entre uma boa e a outra má, possibilita o contraste, fundamentado em toda a construção narrativa calviniana, bem como a sátira caricatural, pois as metades são intoleráveis.
Segundo Calvino os fatos estranhos, fantásticos surgem da combinação e simetrias utilizadas para a estruturação da narrativa:
Deixo para os críticos a tarefa de colocar meus romances e narrativas em uma classificação do fantástico. O que para mim está no centro da narração não é a explicação de um fato estranho, mas a ordem que esse fato estranho desenvolve em si e em torno de si: o desenho, a simetria, a rede de imagens que se depositam em torno desse fato, como uma formação de um cristal[1]. (CALVINO, 1984, p. 62)
Através da linguagem e das várias possibilidades de “jogos” que ela permite desenvolver, Calvino integrou, em suas obras, segundo a estética blanchotiana, uma “experiência total”, rompendo com paradigmas da experiência do real e do possível, para ultrapassar os limites do inexistente, do fantástico. A literatura calviniana teria, então, por finalidade ser ela mesma.
A obra de Calvino pertence à linha das pesquisas do OULIPO - Ouvroir de Littérature Potentielle -, que nasceu na França em 1960 causando uma completa revolução quanto aos modos de pensar e de escrever literatura. Tal abordagem lingüístico-literária é observada no “estilo” calviniano de fazer literatura, ao encarar a linguagem como um jogo combinatório. Segundo Alencar & Moraes, “De fato, os oulipianos afirmam que toda literatura resulta da combinatória de um número finito de objetos, dispostos de um modo que respeita certas normas, tratando-se, segundo eles, de uma questão de configuração” (ALENCAR & MORAES, 2005, p. 21-22).
Inspirado por essa lógica do jogo combinatório, em Assunto encerrado, Calvino propõe uma máquina que produzisse literatura, “servindo a uma necessidade tipicamente humana: a produção da desordem” (CALVINO, 2006, p. 204). Seria uma máquina de narrar que expressasse a reversibilidade entre o real e o fantástico, o lógico e o ilógico, a consistência e o insólito – essa ambiguidade que configura o humano, num movimento constante de remissão de uns a outros.
Diante destas considerações, objetivamos refletir sobre a máquina narrativa calviniana articulada aos conceitos de fantástico, real maravilhoso e realismo mágico propostos por Seymour Menton em seu livro La verdadera historia del realismo mágico. Nosso estudo consistirá, pois, numa leitura da trilogia Os nossos antepassados, formada pelos livros O visconde partido ao meio (1951), O barão nas árvores (1957) e O cavaleiro inexistente (1959).
Ao longo da análise, vamos verificar se estas três categorias estão presentes nos três livros. Para tal, consideraremos: a) os três protagonistas das narrativas, a saber: um visconde partido ao meio, um barão que decide morar nas árvores e um cavaleiro inexistente; b) a presença de narradores enigmáticos; c) a relação do leitor efetivando o potencial fantástico das três narrativas em questão, d) e o modo como Calvino cria o maravilhoso em Os nossos antepassados, de maneira tal que tanto os personagens históricos quanto os personagens fantásticos passariam a fazer parte do folclore italiano.
Seymour Menton, de forma simplificada, distingue o fantástico como “quando os acontecimentos ou os personagens violam as leis físicas do universo” (MENTON, 1998, p. 30). Assim sendo, em Calvino fatos inverossímeis classificam-se nessa categoria, como, por exemplo, uma armadura que se comporta como ser humano e um visconde que sobrevive mesmo que partido ao meio. Por sua vez, o real maravilhoso – termo criado por Alejo Carpentier - reúne “os elementos fantásticos que têm uma base folclórica com predomínio da cultura indígena e africana” (MENTON, 1998, p. 30). Nota-se o caráter lendário e cultural que permeia o termo criado por Carpentier: “No entanto, o realismo mágico em qualquer país do mundo, destaca os elementos improváveis, inesperados, assombrosos MAS reais no mundo real.” (MENTON, 1998, p. 30). O realismo mágico, por mais inusitado que seja certo acontecimento, pode existir, não contrariando as leis empíricas, mas mantém-se como algo extraordinário, pela sua improbabilidade de acontecer.
Após esta breve introdução, passaremos à apresentação de uma leitura das obras calvinianas citadas acima. Nesta leitura remeteremos a alguns pontos que podem ser considerados como elementos da literatura fantástica presentes nessas narrativas.
A obra O visconde partido ao meio é uma narrativa cujo tema é inusitado e que tem como intuito o divertimento. Esse livro aborda o tema do homem cortado em dois após participar da guerra entre cristãos e turcos no século XVII. O visconde Medardo di Terralba sobrevive mesmo partido verticalmente ao meio: uma metade - a direita - é excessivamente má, enquanto que a outra metade - a esquerda - é insuportavelmente boa.
Tal fato pode ser considerado como uma alegoria do homem contemporâneo que se sente, muitas vezes, incompleto, mutilado, “partido ao meio”. Além disso, a diferenciação das duas metades, entre uma boa e a outra má, possibilita o contraste, fundamentado em toda a construção narrativa calviniana, bem como a sátira caricatural, pois as metades são intoleráveis.
[1] No original: “Je laisse aux critiques la tâche de placer mes romans et récits dans une classification du fantastique. Ce qui est au centre de La narration pour moi n’est pas l’explication d’un fait étrange, mais l’ordre que ce fait étrange développe en soi et autour de soi: le dessin, la symétrie, le réseau d’images qui se déposent autour de lui, comme dans la formation d’un cristal.” (CALVINO, 1984, p.62). A tradução é nossa.
(Leiam a íntegra do ensaio O fantástico, o real, o maravilhoso, o realismo mágico e a construção narrativa na trilogia Os Nossos Antepassados, de Ítalo Calvino, de Bruna Fontes Ferraz, na próxima edição da Zunái.)
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