terça-feira, 1 de dezembro de 2009

DEBATE: COMO É POSSÍVEL AVALIAR A QUALIDADE DE UM POEMA?

Dirceu Villa: só podemos falar sobre a idéia de qualidade em poesia se a considerarmos uma arte.

Se acharmos que é um cri du coeur do poeta, ou um raio que acerta sua cabeça por vezes, & que qualquer um pode escrever boa poesia, tudo o que vem abaixo é perfeitamente inútil & dispensável.

E aquilo de que falo abaixo aplica-se apenas àquele que faz distinções qualitativas dentro da arte, o crítico, ou o artista com habilidades críticas, um profissional ou um notável diletante, & não o leitor de poesia por prazer, sem a intenção de escrever sobre o assunto.

Não que as distinções a seguir não lhe sejam também úteis: não lhe são necessárias.

Há duas coisas iniciais sobre avaliar a qualidade da poesia:

a) é preciso que, no mínimo, o avaliador em questão seja um leitor muito completo & exigente de poesia: que leia poesia de várias épocas, de várias línguas;

b) é preciso que seja, criticamente, alguém que compara & que não julga por gosto.

Os pré-requisitos são esses dois.

Ezra Pound, que se dedicou mais & melhor do que qualquer outro ao assunto específico, ainda acrescenta que não se deve acreditar em quem não tenha publicado obra própria de relevo, ou que não tenha feito públicas as suas descobertas & propostas, discutindo-as.
Pound faz uma pergunta muitíssimo interessante, também: pergunta-se por que um poeta deveria saber menos de sua arte, ou sequer treiná-la, se um músico que seja digno do nome precisa conhecer sua arte & exercitá-la oito horas por dia.

A propósito disso, é preciso também dizer algo muito impopular, que é o fato de que a obra crítica de Ezra Pound permanece como o exercício mais completo de reflexão & proposta avaliativa da poesia. Livros como The Spirit of Romance, ABC of Reading, The Literary Essays of Ezra Pound & Guide to Kulchur são simplesmente fundamentais.

Voltemos aos princípios: precisa ser um leitor muito completo de poesia. Não há outro modo de conhecer aquilo sobre o que fala (& devemos supor que um leitor muito completo de poesia seja um leitor muito completo de modo geral, & que sua cultura não se limite a verso, ou a literatura). Precisa ser alguém que ama a arte, & não mero burocrata postiço que presta serviços universitários ou jornalísticos.

Se lê a poesia de várias línguas, está atento às diversas possibilidades de escrita poética, & é provável que conheça com razoável facilidade onde determinadas idéias ou formas surgiram, & onde vieram parar. E como vieram parar. O como já nos introduz no tópico b).

Comparar significa ser capaz de isolar os aspectos básicos que se repetem em autores diversos, entendendo suas excelências proporcionais; significa compreender como determinada mentalidade se tornou forma; como forma & sentido são um amálgama (não apenas em poesia, mas em arte); ser capaz de estabelecer não apenas a mentalidade mais compreensiva entre os artistas, mas, diretamente implicado nisso, o uso mais hábil da forma para o efeito, & o efeito mais importante (Jacob Burckhardt falaria em termos como esses últimos, sobre Dante Alighieri).

Dizer que forma & sentido são um amálgama não quer dizer que um índice formal deva corresponder diretamente a algo em sentido, o que críticos menores & tacanhas em geral pensam que deve.

Forma & sentido como amálgama é algo mais complexo, algo que exige a aplicação de um ouvido inteligente & atento, & uma capacidade desenvolvida no estabelecimento de relações. Entender a correspondência de um ritmo com uma emoção, por exemplo.

Poesia, como toda arte, é o registro de uma percepção rara, por quem a tem, em linguagem.

A primeira coisa que distingue um poeta é sua percepção incomum, no sentido de que é mais veloz ao estabelecer relações antes imprevistas; de que, por esse motivo, é muitíssimo mais concisa do que a linguagem corrente; de que, por esse motivo também, é quem escreve com o maior apuro, a maior atenção ao que a língua & a linguagem têm de virtual, de não explorado: o efeito é aquele já muito repetido em toda parte como um corolário, o de que a poesia nos faz ver algo como se víssemos pela primeira vez. É um clichê, & é verdade.

Um leitor crítico, capaz de entender diferenças em qualidade, é portanto aquele capaz também de um repertório crítico do passado da arte — não existe o ex nihilo: a poesia, como uma arte, tem seus princípios.

Um repertório crítico do passado da arte é a versão politicamente correta do que antigamente se chamava cânone (um nome hoje repugnado por suas relações com aplicação ideológica de poder de classe & por conexões religiosas), ou o grupo de poemas & autores que exemplificariam o que já se fez de modo excelente na arte.
(Leiam o depoimento de Dirceu Villa na íntegra, e também os de Carlos Felipe Moisés e de Susanna Busato, na próxima edição da Zunái, em dezembro.)

Um comentário:

  1. Claudio, gostei do texto.

    Acho que é principalmente no que se refere ao requisito 'b' (é preciso que seja, criticamente, alguém que compara & que não julga por gosto) que alguns críticos deixam a desejar.

    A questão, de qualquer modo, é bastante delicada. No debate sobre o 'valor da arte' se questiona, por exemplo, o que é que se considera e o que é que se deixa de lado quando se deixa de lado o gosto na avaliação de uma obra (é uma pergunta sobre o que se entende por gosto e em que sentido um julgamento com base nele se difere de um julgamento com base em outros critérios. O Dirceu Villa fala desses outros critérios no texto tbm).
    Tbm acho interessante pensar no quanto o fato de se ter conhecimento de poesia (requisito 'a'), ou de arte, contribui para o desenvolvimento de uma 'capacidade de julgar' (ou seja lá que diabo for) que se distancia em muito daquela cujos critérios são meramente pessoais (de 'gosto' pessoal). A relação não é necessariamente proporcional - quanto mais se entende mais criteriosa e adequadamente se julga -, mas acho que muitas vezes acontece.

    Se pararmos para pensar, por exemplo, parece fazer muito sentido a ideia de que uma pessoa que não tem contato com poesia, que não lê, emite julgamentos mais parciais a respeito de poesia do que aquele que tem contato. É que talvez não haja melhor lugar para se munir de critérios para julgar uma expressão artística do que na própria expressão artísitca. Acho que é nesse sentido que 'a' e 'b' estão bem ligados.

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