quinta-feira, 19 de novembro de 2009

UMA CONVERSA COM ARMANDO ROA VIAL

Zunái - Como aconteceu o seu primeiro contato com a poesia? O que o motivou a escrever poemas, e quais autores marcaram a sua formação literária?

Armando Roa Vial - Minha primeira aproximação com a poesia aconteceu aos dezesseis anos, com a leitura de John Keats e Rainer Maria Rilke. O encontro com eles foi totalmente casual: nessa época, eu me interessava muito mais pela narrativa. Porém, a partir de Keats e Rilke, eu me transformei num leitor voraz de poesia, aproveitando a magnífica biblioteca de meu pai. A quantidade de leituras nesse tempo foi enorme e variada: ingleses, alemães, italianos, franceses, espanhóis e, também, chilenos. Creio, no entanto, que de todos os autores lidos nesse tempo houve dois decisivos para a minha formação poética: Ezra Pound e T. S. Eliot. Para mim, leitura e escritura são indissociáveis: minha escritura, desde sempre, tem sido uma extensão de minhas leituras. E se leio e escrevo é, simplesmente, pelo assombro que sempre senti frente à linguagem por sua capacidade de configurar e transfigurar a realidade, seja articulando-a ou desarticulando-a.

Zunái - O Chile viveu uma difícil passagem do regime autoritário para a democracia. Quais os reflexos dessa transição na vida literária de teu país, e em tua obra, em especial?

ARV - A ditadura militar aniquilou não apenas a vida intelectual do Chile anterior a 1973, mas também firmou as bases ideológicas do modelo neoliberal que vigora até os nossos dias e cujas premissas são o pragmatismo, o culto ao instrumental e ao descartável, a avidez por dinheiro e poder. O pensamento criador, a sensibilidade artística ou a fineza de espírito não têm lugar nesse sistema. Por isso o Chile, apesar de seus êxitos econômicos, é um país cada vez mais analfabeto e empobrecido. Creio que toda a poesia chilena - e aqui também me incluo - das últimas três décadas, direta ou indiretamente, tem se colocado numa posição crítica em relação ao sistema, seja pela via da ironia, do humor ou do desespero.

Zunái - Como era o ambiente intelectual chileno na época em que você publicou seu livro de estréia, Carta a la juventud, em 1993? Como a obra foi recebida pela crítica?

ARV - O ambiente literário nessa época estava dominado pelo culto ao que se chamou La Nueva Narrativa, uma literatura comercial manejada por consórcios editoriais transnacionais. A poesia, pouco a pouco, começava a rearmar-se depois dos anos de ditadura, com a volta de escritores do exílio e o ressurgimento de algumas vozes silenciadas, particularmente Lihn e Teillier. Cartas a la Juventud era uma antologia de cartas dirigidas a jovens de diferentes épocas por grandes figuras do pensamento e da arte: ali estavam Rilke, Kropotkin, Abelardo, Santo Agostinho, Van Gogh, entre muitos outros. Sua recepção, para minha surpresa, foi positiva.

Zunái - Em Zarabanda de la Muerte Oscura, você reúne poemas que compõem um mosaico sobre o tema da Dama da Foice com citações em latim, referências do imaginário medieval e da música erudita, entre outros elementos. Comente o processo de criação desse livro. Você planeja o tema e os recursos estilísticos antes de escrever, ou o livro surge como resultado do trabalho poético?

ARV - Como eu já te dizia, minha escritura tem sido sempre a bitácula de minhas leituras. Contrariamente à "angústia da influência" postulada por Bloom, eu creio em uma literatura dialógica, feita de ecos, alusões, citações. Minha Zarabanda é um enorme mosaico cifrado de citações que alegorizam a morte do autor e a impessoalidade da poesia. A morte, aliás, numa época de maquiagens como a nossa, é disfarçada ou ocultada. Trabalhei na Zarabanda embutindo as partituras de um quarteto de George Crumb aos textos. Foi um trabalho muito árduo já que tentei transladar as estruturas harmônicas e os timbres da música de Crumb à linguagem poética. Foi muito útil para mim, também, a experiência de trabalho, como advogado, em medicina legal e criminalística, quando tive um contato diário com os aspectos mais sombrios e ocultos da morte: a decomposição do corpo, a fragilidade de nossa anatomia, a instabilidade fronteiriça do ser humano entre a vida e a morte.

Zunái - Em Estancias en homenaje a Gregorio Samsa, o personagem criado por Kafka aparece como uma "amarga metáfora de si mesmo", e também dos sentimentos de asco, medo, perplexidade, próprios de uma época confusa e conflituosa como esta em que vivemos. Não por acaso, você incluiu na coletânea um díptico em que Samsa dialoga com o pintor inglês Francis Bacon. Em sua opinião, qual é o sentido de escrever poesia numa época regida pelo terror e pela banalidade?

ARV - Kafka e Bacon são para mim símbolos da suspeita e do mal-estar, da consciência de crise e da angústia frente ao conformismo enganoso e a complacência da sociedade contemporânea. Ali onde se estende um véu ou se disfarça, Kafka e Bacon desnudam, desmascaram. Quando se maquia a realidade apresentando-a como uma superfície limpa e pura em nome de um bem-estar e uma felicidade falaz, puramente anestesiante, Bacon, Kafka e tantos outros nos falam a partir do dilaceramento, da erosão, que é muito mais humana e humanizante. E digo isto porque o homem, no meu entender, por definição, é um ser precário, não firmado na natureza, com sua existência abrindo-se como uma enorme interrogação.

(Trechos da entrevista que realizei com o poeta chileno Armando Roa Vial e publicada no n. 11 da Zunái, em dezembro de 2006.)

Um comentário:

  1. Gostei! Que interessante ele não ter medo de ser influenciado por outros autores, não ter medo de perder aquilo que poderíamos denominar 'a sua própria voz'. Acho que a experiência de ler outros poetas pode não só servir de bagagem cultural para aquele que escreve, mas tbm inspirá-lo a escrever de perpectivas até então inexploradas... E, nesse último sentido, o que o outro escreve está presente no meu texto de uma forma particularmente minha.

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