quinta-feira, 5 de novembro de 2009

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (II)


A MÁQUINA LÍRICA SE ARMANDO

Mr. Interlúdio, de Armando Freitas Filho, é uma notável síntese de lirismo e construção formal, expressão subjetiva e invenção de linguagem. Publicado pela primeira vez em 1979, no livro A mão livre, esse poema foi reeditado em 2008, na forma de plaquete, com tiragem de cem exemplares e projeto gráfico de Sérgio Liuzzi, a partir de um desenho do próprio autor (que fez, com a mão esquerda, uma caricatura de si mesmo, numa representação irônica do próprio discurso).

Poema longo que se desenvolve como um monólogo dramático sem ação fabulatória, Mr. Interlúdio estabelece um claro diálogo intertextual com a poesia portuguesa, e em especial com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro (sem esquecermos do Sá de Miranda das Trovas à maneira antiga: “Comigo me desavim / sou posto em todo perigo: / não posso viver comigo / nem posso fugir de mim”). A tradição do eu fingido, duplicado ou mascarado, aliás, nasce com a poesia portuguesa, se pensarmos nas cantigas de amor do século XII, em que a voz feminina era a persona de um trovador masculino que mentia o que sentia. No poema de Armando Freitas Filho, a duplicação do eu tem o sentido de busca, ou talvez de estranhamento, de um outro que se ignora, mas que está presente nas mesmas roupas, nos mesmos sapatos, na mesma hora registrada no relógio. Assim, logo nos primeiros versos, o autor escreve: “Quem sou você / que me responde / do outro lado de mim? / Quem é que passa / invisível / pelo espaço da sala / e vai / do meu corpo / a este outro / em emulsão ou emoção / instantânea / feito como eu mesmo / de repente / em noite antiga / e não perde / nessa viagem / o tempo que perdi / e, no entanto / os dias que me fizeram / estão ali / correndo em suas veias?”. Nesta sequência de interrogações, em linguagem substantiva e direta, com poucas metáforas ou floreios verbais, o poeta cria uma tensão entre o eu que narra e o que é narrado, o eu que pensa e o que sente, o eu que mente e o que se cala, conflito que se multiplica nos jogos antitéticos entre subjetivo e objetivo, sujeito e mundo, vida e linguagem. No campo semântico, essas oposições estão presentes, por exemplo, no choque entre referências concretas (caderno, relógio, cigarro, janela) e imateriais (sonho, silêncio, memória, ecos), e ainda nas afirmações paradoxais, como nestas linhas: “O que sou / não sei / como me fiz / ao longe / e não me alcanço / toda vez / quando escapo / sem lembrança / ou flagrante (...). / O que sei / não sou / pois me esqueço / todo o que me fez / por dentro: / tudo o que está perto / todo o avesso / tudo o que de cor / o coração repete / entre relâmpagos”. A voz do poema se torna cada vez mais enigmática, ambígua, imprecisa, aproximando-se da lógica construtiva da música e do sonho.

Em Mr. Interlúdio, a música é o princípio estrutural da composição, que orienta a duração de cada linha, as pausas e mudanças de ritmo. A própria palavra “interlúdio”, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, significa “trecho de música instrumental que se intercala entre as várias partes de uma longa composição, do tipo ópera, missa, cantata etc.”. A espacialização das linhas do poema e sua divisão interna nas páginas reforçam a divisão melódica e sinalizam a própria maneira de oralização do texto poético, sugerindo ênfases e pausas, o andamento lento ou rápido das frases, como se fossem acordes de uma composição musical. A distribuição das palavras e linhas na página colaboram também com a concepção visual do livro, que intercala páginas brancas e escuras, traduzindo o ritmo do poema numa linguagem plástica. O designer Sérgio Liuzzi inseriu também variações gráficas do desenho de Armando, que aparece ora invertido, ora recortado, ora duplicado e por fim dissolvido num abstracionismo gráfico, que aponta talvez o silêncio, a abolição das formas ou o esquecimento de si. Em Mr. Interlúdio, temos uma obra situada na zona fronteiriça entre poesia, música e pintura, e que exatamente por isso exige do leitor uma lógica que não seja puramente conceitual ou literária; é preciso estabelecer uma relação lúdica e sensorial com as palavras e com as imagens, que formam uma unidade estética. O leitor se torna, talvez, um outro eu do poeta, à medida que, ao interpretar sua máquina lírica, vai armando uma outra, dentro das inumeráveis possibilidades de leitura do poema. Nenhuma é definitiva, nenhuma é correta; todas são distintos lances de uma partida condenada a não ser concluída, e nisto reside seu encanto.

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