terça-feira, 10 de novembro de 2009

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (VI)

UMA TEMPORADA NO INFERNO URBANO

A Musa Chapada é um livro que reúne poemas de Ademir Assunção e Antônio Vicente Seraphim Pietroforte com ilustrações do artista plástico Carlos Carah, que traduziu a alta temperatura dos textos em imagens brutais, próximas a um figurativismo expressionista. O volume está dividido em quatro seções: Grogues e noturnos, Viagem através da neblina, Clube do Pico e Bagana’s Blues, que abordam o consumo de drogas no cenário de miséria e violência dos centros urbanos. Os poemas fazem referência a lugares conhecidos de São Paulo, como o Largo de São Bento, a Catedral da Sé, o Parque do Carmo, o Bexiga, por onde circulam personagens criados pelos autores, como Igor, Lili Maconha ou Mister Morfina, em cenas que recordam a velocidade narrativa do videoclipe e da história em quadrinhos.

Em Clube do Pico, poema de Antônio Vicente Seraphim Pietroforte (título que ecoa o lendário Clube do fogo do inferno), o autor imagina um casarão abandonado na Zona Leste, onde jovens se reúnem à noite para beber, fumar baseado ou fazer sexo: “vai chegando gente / só vai menina gostosa / só vai moleque bonito / menina beijando menina / vão lá no Clube do Pico”. Os versos são breves, coloquiais e permitem uma aproximação com o poema Osso & liberdade, de Roberto Piva, outro clube imaginário freqüentado por garotos que dedicavam-se a orgias e à leitura de Mário de Andrade.

Piva, aliás, é a principal referência intertextual da Musa Chapada, e em especial o livro Paranóia, de 1963, onde encontramos uma peça intitulada Visão de São Paulo à noite. Poema antropófago sob narcótico, que se insere numa tradição marginal da literatura que teve início em meados do século XIX. Conforme escreve Virna Teixeira no prefácio à Musa Chapada, o consumo de drogas é “tão antigo quanto a civilização”, mas sua presença na literatura “surgiu após os avanços da Revolução Industrial, sobretudo a partir do uso de ópio na época do Romantismo inglês”. As Confissões de um comedor de ópio, de Thomas De Quincey, publicado em 1821, inaugurou essa linha temática na literatura ocidental, e atingiu um ponto de ebulição na época do Simbolismo, especialmente com o livro Paraísos artificiais, de Baudelaire.

No século XX, as drogas marcaram presença nas obras de autores como Huxley, Artaud, Ginsberg, que consideravam a ingestão de alucinógenos um método para a obtenção de estados alterados de consciência, além de ser uma atitude de ruptura com as normas burguesas. Para Camilo Pessanha e Henri Michaux, a droga foi um estímulo à criação, e ainda hoje se discute a influência dos entorpecentes na escrita desses autores. A visão ingênua em torno das drogas atingirá o seu ápice nas décadas de 1960-70, com a contracultura, que colocou o uso do LSD no mesmo plano que a liberação sexual, a contestação política, o rock e a busca de antigas religiões, como o xamanismo. Nos tempos pós-modernos, a mitologia da droga não exerce o mesmo encanto, pela divulgação de informações médicas sobre os seus efeitos na saúde física e mental e pelo vínculo entre a droga e o crime organizado. O charme de se beber absinto num cabaré parisiense cedeu vez às imagens de crianças cheirando crack debaixo de viadutos.

É neste cenário desolado que se desenrolam as narrativas poéticas da Musa Chapada, que não ignoram a guerra em curso nos centros urbanos, que Ademir Assunção retratou no poema Paisagem crivada de balas: “As rajadas podem ser ouvidas de Pirituba ao Pontal. / Escopetas, uzis israelenses e fuzis russos / sangram as bordas da Noite Drogada”. A violência é sintetizada por Ademir num verso notável: “Deus está solto. E dizem que Ele está armado”. A Musa Chapada, porém, não se resume a um rude naturalismo, por maior que seja a aproximação entre arte e realidade proposta no livro. Os autores dominam a técnica poética, e vamos encontrar recursos como a elipse, a paródia, a citação, a enumeração caótica, a espacialização das linhas, o diálogo com outras artes, e em especial a música, o cinema, o comic book, a pintura. Virna Teixeira aponta a incorporação de gírias do mundo da droga, como talco, granizo, farinha ou nariz nervoso, que trazem a marginalidade da temática ao próprio campo semântico.

Nos poemas de Ademir Assunção a enumeração caótica é um elemento estrutural, como em Noturno com marijuana, que mescla o jazz de Miles Davis a sacos de lixo, filmes de Hollywood ao monte Fuji e deusas do Olimpo a ogivas nucleares. Já nos poemas de Antônio Vicente vamos encontrar sex shops, pôsteres, metralhadoras, calcinhas e outras referências simbólicas que formam um bric a brac da cidade caótica. A paródia é um recurso utilizado com freqüência pelos dois autores, com ênfase na dessacralização religiosa, como na antiprece Santa Maria Joana, de Ademir Assunção (“erva santa dos xamãs / pode ser treva / pode ser canto / pode ser trava / pode ser cura”) ou na Reza n. 2 de Antônio Vicente Seraphim Pietroforte (“irmão Fogo / brasa do cigarro acesa / asa do carvão / sopro do carvão ao vento / na fumaça preta”).

O diálogo com a tradição literária também aparece em diversos poemas, como A volta do anjo torto, em que Ademir Assunção faz referências a Carlos Drummond de Andrade e Torquato Neto (“mas eis que um anjo torto / aquele mesmo, com asas de avião / entrou pela porta / um baseado na mão”). A presença das histórias em quadrinhos é recorrente em todo o volume, não apenas pelas ações rápidas e fragmentárias, como também pela citação de personagens como o Hulk, o Coringa, o King Kong, entre outros, como no poema O fim da história em Gotham City, de Ademir Assunção (“enquanto Coringa injeta no braço esquálido / a última gota da ampola / e Batman se retorce como uma cobra / picotada pelas garras das Iguanas de Hong Kong”). “O clima de horror e ficção científica” da Musa Chapada, diz Virna Teixeira, “traz as marcas de uma escrita psicodélica”, em que as fronteiras entre os universos real e simbólico são tênues. Porém, lendo com atenção este livro, o que notamos não é a busca de “estados alterados de consciência”, e sim o mergulho lúcido e crítico numa realidade cada vez mais próxima dos pesadelos de uma bad trip.

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