quarta-feira, 11 de novembro de 2009

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO (VII)

IMAGENS DO MUNDO FLUTUANTE

Livro dos ventos, título de estréia da poeta Jacineide Travassos, é um conjunto de narrativas líricas divididas em duas partes: Hálito e Nome e Natureza Móvel, nomes que já indicam, desde o prólogo – intitulado Pequena História do Nascimento do Mundo - alguns dos temas essenciais desta obra: a invocação dos elementos e das estações, as referências míticas, a busca de uma origem simbólica e a fundação de um universo pessoal pela linguagem. A autora não pretende retomar a tradição bucólica, que tem antecedentes ilustres, como Virgílio, mas antes reinventar a natureza como ser semântico, numa particular teodicéia. A forte plasticidade dos poemas, com um meticuloso artesanato metafórico, de viés barroquizante, atinge talvez sua maior expressão nas peças mais condensadas, como Veneris Dies: “os ventos sopram chuva branca / pombas em vôo sólido / navios de pedra / sonorizam o silêncio das horas / ventos sopram a tarde sépia / asas de borboletas quedas da aurora / as folhas rugem eloqüência de mar exilado em Chipre / amor / chuva dos olhos em ilha”, peça que revela a presença fanopaica do haicai de Matsuo Bashô, e ainda a concisão cabralina (aquele Cabral da Pedra de Sono, fiel às conquistas pictóricas de Murilo Mendes).

A natureza, nos poemas de Jacineide Travassos, é uma metonímia do espaço interior, subjetivo, transformado em lírica de imagens (o que fica mais explícito, em especial, na segunda parte do livro, onde ela diz: “o mundo faz-se do olhar / espaços sugeridos pela diagonal / planos sem volume / dissolvem-se na memória / as mãos lentamente / erguem a escritura das ondas”). Ela não faz a descrição convencional do mundo cotidiano, nem cai numa poesia confessional, rotineira, em que as experiências existenciais se sobrepõem aos experimentos lingüísticos; a autora busca antes uma fusão entre o semântico e o subjetivo, obtendo uma voz pessoal que se afirma como fato estético — idéia prenunciada já na epígrafe do livro, de Pietro Wagner: “depois inventa uma pátria para o teu pássaro / e um telhado de açucenas para o vôo metal da tua lágrima”. A poeta desautomatiza a escrita, o olhar sobre si mesma e sobre o mundo em pequenas narrativas nas quais o trânsito acelerado das imagens recorda as técnicas do cinema, como na peça Ulisses e o silêncio das sereias: “nos olhos mulher cindida em azul e carne / carne em mudez de matéria / pedra / Ulisses ferindo os pés em geografia marítima / nos olhos o sangrar da memória / lâmina sulcando os mares / enunciando ilíadas odisséias inventários”. Nada é estático aqui: tudo se move numa dança dos signos no branco da página, indicando talvez o caráter lúdico, mutável e impermanente de todas as coisas, como já sabiam Lao Tzu e Heráclito de Éfeso. Uma dança cósmica, totemizada na poesia, que é a expressão do pensamento pela música.

Nenhum comentário:

Postar um comentário