terça-feira, 13 de abril de 2010

CÂNONE E ANTICÂNONE (X)

Antero de Quental diz ainda, em A Dignidade das Letras:

"Não, meus senhores. Eu não tomei nas mãos o pendão só pelo amor da destruição.

Menos, a presunção orgulhosa de gladiador novo, cuja audácia impaciente não conhece prudência e procura os mais robustos e aguerridos para o desafio e o combate. Menos ainda, o escândalo. Não, meus amigos. Não vale realmente a pena comover-se a gente quase até a veemência, indignar-se quase até ao sofrimento, chamar a sua inteligência e o seu coração, só para responder com grandes frases a pequenos golpes de gente ainda mais ignorante do que malévola.

(...)

Não foi por isso, pois, que eu intentei fazer desacatando a venerabilidade sacerdotal do sr. Castilho. Não foi defender uma escola, um grupo, uns homens. Foi só defender a liberdade e dignidade do pensamento, que nesse momento se ofendiam na chamada escola de Coimbra, no trabalho de alguns homens (bom ou mau, não curei de o saber) mas trabalho livre, independente, trabalho santo pois, e digno de respeito.

(...)

Sem espírito não há liberdade; sem liberdade, não há espírito. Ora, esta é a alma, a vida, a essência das literaturas, da poesia, da arte, de todo o trabalho do pensamento e da inspiração. Literatura que respeita mais os homens do que a santidade do pensamento, a independência da inspiração; que pede conselho às autoridades encantadas; que depende de um aceno de cabeça dos vizires acadêmicos; essa literatura não é livre – ubi liber tus ibi spiritus – não tem, logo, espírito, não é viva e poética... não existe pois como coisa alta e ideal, isto é, não existe, porque só ideal e alta se concebe literatura e poesia. Bastava-me isto só para condenar o sr. Castilho, as suas doutrinas, o seu procedimento. Se isto é verdade, se não há verdadeira poesia fora desta alta e digna independência, o sr. Castilho é o maior inimigo da poesia portuguesa, porque quer matar nela aquilo que é a sua essência, a sua força, a sua vida.

(...)

O escritor quer o espírito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, intemerato e incorruptível. Só assim serão grandes e fecundas as suas obras.

(...)

Ora concebe-se, já não digo o grande homem, que nem todos podem ser, mas o homem de bem, que todos têm obrigação de ser, pedindo o auxílio de uma autoridade qualquer para pensar, consultando o termômetro da conveniência e aprovação dos mestres para falar, recebendo o santo e a senha como um soldado disciplinado, feito autômato e escravo na coisa espontânea e individual por excelência, o pensamento? Um homem de bem não faz isto: e toda a literatura que o faz é uma desonesta literatura.
(...)

Se a tirania da moda e da opinião é insuportável, não o é menos a dos mestres e das reputações opressivas e orgulhosas; que tendo-se em vista dizer alguma coisa nova, descobrir, não copiar e repetir, bom é que haja liberdade de procurar, que não se perturbe nunca o pesquisador de bem e de verdade, ainda aquele que a pretende encontrarnos desvios mais arredados e estranhos; que se creia no possível e se respeite ainda o erro quando for filho de um desejo tão sincero e de um tão honroso empenho. Ora isto é que não fazem as literaturas oficiais. Não concebem salvação fora do grêmio estreito de suas igrejas, para não dizer capelas e oratórios. Não entendem outras palavras senão as poucas do seu dicionário incompleto e mutilado. Acham que o mundo está todo explorado, todas as ideias, todos os sentimentos, todas as formas, e que tudo isso o têm eles nas suas gavetas e nas suas pastas.

(...)

Isso assim pode ser que seja útil, fácil, vantajoso; pode ser que assim se conquiste a opinião das maiorias boçais, que dão a fama, ou o favor, das minorias inteligentes, que dão alguma coisa melhor do que a fama, que dão a importância, o interesse e o poder. Pode ser que seja hábil isto e até profundo – só não é nem digno nem verdadeiro.

Mas são assim as literaturas oficiais, governamentais, subsidiadas, pensionadas, rendosas, para quem o pensamento é um ínfimo meio e não um fim grande e exclusivo; para quem as ideias são uns instrumentos de fortuna mundana, uma ocasião mais de sacrificar as pequenas ou más paixões, em vez de serem uma fortaleza onde se guardem do contato das impurezas e das misérias; para quem esta santa tribuna da palavra não passa de um marco donde lancem o pregão de vergonhosos leilões; para quem a glória é uma especulação feliz, não uma sagrada palma que épreciso colher com mãos puras; para quem, enfim, nobreza, desinteresse, ideal, sinceridade, sacrifício, são apenas boas e sonoras palavras.

(...)

São assim as literaturas oficiais; e o que mais, podem ser doutro modo?

(...)

Como não buscam a verdade pela verdade, a beleza pela beleza, mas só a verdade pelo prêmio e a beleza pelo aplauso, têm de as renegar tantas vezes quantas a beleza não agradar aos olhos embaciados da turba que aplaude, e a verdade ofender os senhores que premeiam e recompensam.”

3 comentários:

  1. Celso Vegro14.4.10

    Prezado Prof. Claudio Daniel
    Tremendo esse libelo do Antero. A expressividade de seu depoimento mostra sua fina sensibilidade para com a arte literária. Ademais, mostrou uma coragem sem precedentes ao tomar para si a tarefa de defender um grupo humilhado que foi "elite" das letras portuguesas de então. Realmente são palavras que nenhum crítico da atualidade pode desprezar.
    Abçs

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  2. Que sermão, que oratória!

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  3. ... claro que o estilo do texto é datado, soa hoje solene como um sermão... mas a crítica que Antero fazia aos merdalhões da época é bastante atual, lembra muito certos aspectos da vida literária brasileira...

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