Antero de Quental publicou em 1865 A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, texto de polêmica com Antônio Feliciano de Castilho que mantém plena atualidade, não apenas pela força das ideias, mas sobretudo pela atitude ética do poeta português. Transcrevemos aqui alguns trechos, mas vale a pena ler o texto na íntegra.
“Devo estas explicações ao público e a mim mesmo sobretudo.
Sim: sobretudo a mim, à minha própria dignidade moral. Na hora em que eu não pudesse confessar sem receio ou vergonha, a esse severo juiz que temos dentro, os motivos de uma opinião, de uma frase, de uma palavra sequer proferida numa ocasião grave, na hora em que me visse obrigado a ocultar a consciência, que julga e sentencia, um só ato da inteligência, que pensa e determina – fosse embora aquela frase brilhante e aplaudida, fosse aquela determinação atrevida e admirada – eu é que não poderia nessa hora sentir nos lábios as doçuras do triunfo, mas só no coração todas as amarguras de uma consciência perturbada, o fel da baixeza e da injustiça própria.
O público, esse, tem direito a perguntar-me por que me levanto contra as imagens gloriosas ante que ele se inclina; por que não admiro o que ele ama; por que não respeito o que ele adora; por que me atrevo contra o voto das gentes e a opinião comum.
Estranho desacato, com efeito! Na pessoa de um dos seus escolhidos, ofendi eu toda a opinião, o juízo, o gosto, o sentir de quantos o tenham levantado sobre os braços e sentado na cadeira da autoridade e da glória. Reputam-lhe merecimentos dignos de admiração e respeito. Eu, revoltando-me, é como se dissesse ao respeito e à admiração pública: ‘Sois cegos e insensatos; enganai-vos; o que a todos vos enleva e faz pasmar não é grande gigante, é só nuvem e fumo mentiroso’.
Isto é grave. É preciso firmar-se quem disser isto em boas e sólidas razões, porque se não contradiz tanta gente só pelo gosto de contradizer. Ao público devemos-lhe isto: de lhe não falar, senão em nome de alguma coisa alta, de algum bom princípio, de alguma razão inabalável.
É o que a mim me acontece.
Se ao público e à consciência que me interrogam pelos motivos de uma ação grave por mim praticada eu não tivesse para responder senão paixões, capricho, vaidades, eu seria então, para aquele, quando muito, um iconoclasta atrevido mas sem nobreza nem razão, e o que é pior, para esta um espírito escurecido, sem clarão de justiça, sem luz moral.
Nada disto acontece, porém. Interrogo-me na austera serenidade do meu trabalho interior e acho-me limpo e inocente. Não sacrifiquei ao orgulho, ao interesse, ao egoísmo da mais pequenina das vaidades — a vaidade literária. Nada disso. Falei verdade: e esta só palavra explica o silêncio, ou os desconcertos, piores ainda que o silêncio, daqueles a quem me dirigi; e por outro lado, explica a serena constância com que me levanto de novo para sustentar, para confirmar os sentimentos, as idéias e as palavras que esse amor da justiça e da razão me inspirara.”
O texto de Antero de Quental é enorme, e com certeza não cabe no espaço de um blog, mas irei divulgando aqui alguns trechos mais contundentes.
A Dignidade das Letras um exemplo de manifesto polêmico, apaixonado, mas ao mesmo tempo com embasamento intelectual e ético, o que faz tanta falta às discussões literárias hoje em dia.
“Devo estas explicações ao público e a mim mesmo sobretudo.
Sim: sobretudo a mim, à minha própria dignidade moral. Na hora em que eu não pudesse confessar sem receio ou vergonha, a esse severo juiz que temos dentro, os motivos de uma opinião, de uma frase, de uma palavra sequer proferida numa ocasião grave, na hora em que me visse obrigado a ocultar a consciência, que julga e sentencia, um só ato da inteligência, que pensa e determina – fosse embora aquela frase brilhante e aplaudida, fosse aquela determinação atrevida e admirada – eu é que não poderia nessa hora sentir nos lábios as doçuras do triunfo, mas só no coração todas as amarguras de uma consciência perturbada, o fel da baixeza e da injustiça própria.
O público, esse, tem direito a perguntar-me por que me levanto contra as imagens gloriosas ante que ele se inclina; por que não admiro o que ele ama; por que não respeito o que ele adora; por que me atrevo contra o voto das gentes e a opinião comum.
Estranho desacato, com efeito! Na pessoa de um dos seus escolhidos, ofendi eu toda a opinião, o juízo, o gosto, o sentir de quantos o tenham levantado sobre os braços e sentado na cadeira da autoridade e da glória. Reputam-lhe merecimentos dignos de admiração e respeito. Eu, revoltando-me, é como se dissesse ao respeito e à admiração pública: ‘Sois cegos e insensatos; enganai-vos; o que a todos vos enleva e faz pasmar não é grande gigante, é só nuvem e fumo mentiroso’.
Isto é grave. É preciso firmar-se quem disser isto em boas e sólidas razões, porque se não contradiz tanta gente só pelo gosto de contradizer. Ao público devemos-lhe isto: de lhe não falar, senão em nome de alguma coisa alta, de algum bom princípio, de alguma razão inabalável.
É o que a mim me acontece.
Se ao público e à consciência que me interrogam pelos motivos de uma ação grave por mim praticada eu não tivesse para responder senão paixões, capricho, vaidades, eu seria então, para aquele, quando muito, um iconoclasta atrevido mas sem nobreza nem razão, e o que é pior, para esta um espírito escurecido, sem clarão de justiça, sem luz moral.
Nada disto acontece, porém. Interrogo-me na austera serenidade do meu trabalho interior e acho-me limpo e inocente. Não sacrifiquei ao orgulho, ao interesse, ao egoísmo da mais pequenina das vaidades — a vaidade literária. Nada disso. Falei verdade: e esta só palavra explica o silêncio, ou os desconcertos, piores ainda que o silêncio, daqueles a quem me dirigi; e por outro lado, explica a serena constância com que me levanto de novo para sustentar, para confirmar os sentimentos, as idéias e as palavras que esse amor da justiça e da razão me inspirara.”
O texto de Antero de Quental é enorme, e com certeza não cabe no espaço de um blog, mas irei divulgando aqui alguns trechos mais contundentes.
A Dignidade das Letras um exemplo de manifesto polêmico, apaixonado, mas ao mesmo tempo com embasamento intelectual e ético, o que faz tanta falta às discussões literárias hoje em dia.
Não só em discussões literárias, em tantas outras. Muito oportuna a postagem. Valeu a noite.
ResponderExcluirPrezado Prof. Claudio Daniel
ResponderExcluirA defesa de um discurso é intrinsicamente postura desafiadora. Estabelecer suas crenças e visões do mundo e a elas se manter fiel, concede uma autoridade a quem assim se comporta que dificilmente poderá ser ignorado. O grande problema é o surgimento das polêmicas, essas sim são, em geral, estéreis.
Caro Celso, acho saudável a "batalha das ideias" (para usar uma expressão do marxismo italiano) quando se trata de discutir conceitos, argumentos, com solidez teórica e elegância; agora, quando há apenas intimidação de poeta-juiz, arrogância e grosseria, aí não há debate, já que não há sequer ideias a defender, mas apenas posições de poder... o abraço do
ResponderExcluirCD
Para quem não se lembra da aula no cursinho sobre a polêmica entre Castilho e Quental, segue abaixo um trecho da Wikipédia para situar o tema:
ResponderExcluir"Castilho tornara-se um padrinho oficial dos escritores mais novos, tais como Ernesto Biester, Tomás Ribeiro ou Manuel Joaquim Pinheiro Chagas. Dispunha de influência e relações que lhe permitiam facilitar a vida literária a muitos estreantes, serviço que estes lhe pagavam em elogios.
Em redor de Castilho formou-se assim um grupo em que o academismo e o formalismo vazio das produções literárias correspondia à hipocrisia das relações humanas, e em que todo o realismo desaparecia, grupo que Antero de Quental chamaria de «escola de elogio mútuo». Em 1865, solicitado a apadrinhar com um posfácio o Poema da Mocidade de Pinheiro Chagas, Castilho aproveitou a ocasião para, sob a forma de uma Carta ao Editor António Maria Pereira, censurar um grupo de jovens de Coimbra, que acusava de exibicionismo, de obscuridade propositada e de tratarem temas que nada tinham a ver com a poesia, acusava-os de ter também falta de bom senso e de bom gosto. Os escritores mencionados eram Teófilo Braga, autor dos poemas Visão dos Tempos e Tempestades Sonoras; Antero de Quental, que então publicara as Odes Modernas, e um escritor em prosa, Vieira de Castro, o único que Castilho distinguia.
Antero de Quental respondeu com uma Carta com o título "Bom senso e bom gosto" a Castilho, que saiu em folheto. Nela defendia a independência dos jovens escritores; apontava a gravidade da missão dos poetas da época de grandes transformações em curso e a necessidade de eles serem os arautos dos grandes problemas ideológicos da atualidade, e metia a ridículo a futilidade e insignificância da poesia de Castilho.
Ao mesmo tempo, Teófilo Braga solidarizava-se com Antero no folheto Teocracias Literárias, no qual afirmava que Castilho devia a celebridade à circunstância de ser cego. Pouco depois Antero desenvolvia as ideias já expostas na Carta a Castilho no folheto A Dignidade das Letras e Literaturas Oficiais, evidenciando a necessidade de criar uma literatura que estivesse à altura de tratar os temas mais importantes da atualidade."