segunda-feira, 22 de julho de 2013

UM CONTO DE MÁRCIA BARBIERI


O UMBIGO DE DEUS 

Parte 1 (A membrana): E uma mosca não cansava de farejar o cu de uma estátua, o cu de um cristo já crucificado. E minha cauda não era capaz de espantar o inseto, porque eu nada sabia sobre o desespero da pedra. Antes da insônia dessa noite eu era matéria sem memória, um peixe cascudo. Meus olhos nada sabiam dos pássaros suicidas-agonizantes que nele habitavam. E ninguém podia adivinhar meu sofrimento, ninguém tinha consciência que eu viveria por cem anos e por cem anos eu seria ridicularizada porque sentia o falo de Deus apodrecendo minha vagina. Um clitóris-seixo ruindo do nascimento a morte.

Parte 2 (O ovo e a origem dos órgãos): Eu não era, porém o réptil amarelo soprou em minha boca e eu inflei. Rodopiei sobre meu eixo e descobri meus seios. Deitei na cama do meu carrasco, ele me convenceu que os orifícios-estigmas que eu trazia não eram regiões abissais, mas fontes de um prazer supremo. Abri a boca e o deixei tocar na campainha que tremia com qualquer grunhido. Conduzi suas mãos entre minhas pernas e ele massageou a úvula acima dos pequenos lábios. O meu esfíncter se rompeu e dele explodiu um sol rubro e fecundo. Ovulo. Coito anal. A humanidade se expande no interstício entre o ruído e a merda. Na bifurcação do meu novo corpo, agora apaziguado, um ovo habitava. Uma jararaca de rabo branco ameaçava o bote.


Parte 3 (O cão trágico ou o sepulcro do eu): Conheci outros parentes, outros bichos, outros carrascos e todos dormiram sobre minha puberdade. E todos eles me enganaram desde a infância, me fazendo acreditar que eu era insubstituível. E passaram-se anos e eu chorei meus mortos e eles eram velados e encontrei outros homens de rosto lixado e meus mortos foram cremados e esquecidos, viraram fuligem e seus nomes não me lembro bem, homo sapiens homo erectus neantherdais homens da pedra lascada e suas artes, única coisa eterna, agora viraram artes rupestres perdidas em algum muro-asfalto da cidade. Me fizeram acreditar que eu era o grande cão emplumado, que a qualquer momento alçaria voo, o bode de chifre de ouro. A verdade é que eu sou um bode expiatório, o sangue jorrado da vulva pela sodomia alheia. Tropecei, caí em buracos bem pequenos, cavei para enterrar ossos, o fêmur do monstro branco que clareava o abismo, o monstro que restou de toda grandeza. Ele, num dia que arrancava minha pele, me disse: Você é um lindo cão emplumado! E deslizou a mão sobre meu dorso supostamente alado. Mas no espelho de moldura alaranjada pregado naquele cubículo, eu reconheci meu carrasco, enquanto um mar vermelho dividia-me ao meio. Olhei de novo para o pequeno espelho retangular e vi que eu não passava de um cão vira-lata roendo o osso do eterno retorno.

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