terça-feira, 1 de setembro de 2009

DIÁRIO DE UM SAUDOSISTA

Pertenço a uma geração que nos anos 80 frequentava cineclubes para assistir filmes de arte europeus e circulava à noite pelo Bexiga, que tinha espaços interessantes como a Livraria Pau-Brasil, o Madame Satã, o Carbono 14 (onde assisti pela primeira vez o filme The Wall, do Pink Floyd), além de bares, restaurantes e pizzarias. Todo mundo fumava. Era uma época sem internet ou telefone celular, mas havia jornalismo crítico e de qualidade (como esquecer as matérias de Claudio Abramo e Maurício Tragtemberg na Folha de S. Paulo, ou o suplemento Folhetim, que saía aos domingos, sempre publicando poemas de Augusto de Campos, Paulo Leminski, José Paulo Paes e outras feras?).

Editoras como a Brasiliense, a Max Limonad e a L&PM publicavam, pela primeira vez no Brasil, livros da geração Beat, como On the Road, de Jack Kerouac, Uivo & Outros Poemas, de Allen Ginsberg, e ainda autores malditos como Antonin Artaud. No teatro, era possível assistir a peças como O Percevejo, de Maiakovski, com direção de Luís Antônio Corrêa. O mais belo espetáculo que vi até hoje.

A música brasileira viveu uma renascença criativa, com a Vanguarda Paulista de Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola e Itamar Assumpção, que se apresentavam em lugares como o Lira Paulistana (o fato curioso é que quase todos eles eram paranaenses radicados em Sampa). Quando ouvi pela primeira vez Clara Crocodilo fiquei fascinado com a mistura de música atonal, ópera, performance e linguagem de histórias em quadrinhos; esse disco, para mim, é o momento mais radical e inventivo da MPB desde o Araçá Azul, de Caetano Veloso (não por acaso, os dois compositores se apresentaram juntos no programa Mocidade Independente, então capitaneado por Nelson Motta na Bandeirantes. Imaginem um programa de tevê dedicado à música de qualidade, poesia, cinema, sem apresentar modelos anoréxicas ou trogloditas musculosos; é difícil imaginar algo assim hoje em dia, né?).

Isto sem falar dos shows da série Fábrica do Som, que aconteciam no Sesc Pompéia e eram transmitidos pela TV Cultura: num deles, dedicado aos 50 anos de Augusto de Campos, houve uma emocionante homenagem ao poeta, com números musicais de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Arrigo Barnabé, Eliete Negreiros, Tetê Espíndola, enfim, só a fina flor da música brasileira na época.

Claro que éramos todos comunistas.

Sonhávamos em transformar o PT num partido revolucionário, que derrubaria a ditadura militar e implantaria o socialismo no Brasil. Eu e meus amigos usávamos a estrelinha vermelha do PT na jaqueta, junto ao broche do sindicato Solidariedade, que faria a revolução política na Polônia, substituindo a burocracia stalinista por uma democracia operária.

Sonhos de uma noite de verão...

Estudei jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, ali no prédio da Gazeta, na Avenida Paulista, porque acreditava que era possível fazer um jornalismo investigativo, que fosse a fundo na denúncia das injustiças sociais. Nunca pensei em trabalhar numa assessoria de imprensa para escrever releases de uma nova marca de xampu ou de sabonete hidradante. Nunca pensei que o jornalismo iria morrer, transformado nessa coisa escrota que é a revista Veja.

Pertenço a uma geração que acreditou em utopias. Que foi às ruas em 1984 exigir eleições diretas para presidente da república. Que fez oposição à "Nova República" de Tancredo e Sarney, distribuindo panfletos convocando greves e ocupações de fábricas. Que exigiu o impeachment de Fernando Collor de Mello. Que ouvia Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, lia os beats, Antonin Artaud, Poesia Concreta e Leon Trotsky.

Pertenço a uma geração que era apaixonada pelo futuro. E este não é o futuro que a gente sonhava.

Não mesmo.

9 comentários:

  1. Pertenço a uma geração...

    (também pertenço),também curti e vivi tudo isso e, "o agora" não era bem o que a gente queria, mas não sei o que me leva ainda a acreditar.
    nossa!!! gostei demais desse texto.

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  2. Sueli, grato. Às vezes, sinto uma baita saudade do entusiasmo que a gente tinha naquele tempo, das referências culturais e políticas. Mas não sou quarentão ranzinza, também curto o momento presente, ainda que sem idéia de futuro. Isso às vezes me atormenta: não ter projeto de futuro. Aliás, alguém tem? Beso,

    CD

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  3. Impossível não ter essa nostalgia pelos anos 80, quando desabrochei para as coisas boas. Mas como história pessoal não conta para a análise, eu gosto do que hj vivemos, esse gosto pelo incerto que leva a gente a se projetar e refazer o caminho para descobrir. Eu não morri quando os anos 80 acabaram. Aprendi com eles que ainda há caminhos a trilhar e labirintos a traçar.

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  4. Susanna, concordo com você, claro que o mundo não acabou no final da década de 80... quis apenas fazer um registro pessoal, uma confissão mesmo, de um momento que foi importante para mim, e não pude furtar-me à conclusão melancólica: angustia-me, sim, não haver um projeto político alternativo à ordem neoliberal. Não me agrada nem um pouco viver numa cultura que faz do lucro, da máquina e da técnica os seus deuses, e do consumo desenfreado o seu ideal de vida. Espero que logo surja uma outra alternativa. Beso do

    CD

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  5. CD,
    ando neste mesmo estado de saudosismo, embora curta algumas coisas do momento atual.
    além da falta de utopia, tem algo que me incomoda muito: tudo parecer artificial, oco, postiço, empostado, utilitário.
    este não era, sem dúvida, o futuro que desejávamos.
    nos 80's, (até) a porralouquice parecia mais sofisticada.

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  6. Eu concordo com vc, Cláudio e com o Marcílio. Não quis fazer crítica à sua nostalgia. Insiro-me nela tb. Mas como somos filhos dessa década, vivemos nossa juventude nela, aprendemos a querer coisas melhores e sentimo-nos mal em ver muitas coisas sem conteúdo hj, meras embalagens vazias... Percebo, no entanto, que estamos melhores. Continuamos jovens, acreditando na vida. Em termos culturais, a cidade de SP e a de SJRP (as que tenho notícia), por exemplo, guardadas as devidas proporções, cresceram e diversificaram os espaços de expressão de literatura, música e artes em geral. Não houve arrefecimento, por exemplo, dos impulsos que o governo do Covas deu à cidade com as oficinas culturais, lembra? Por sob a camada dessa massa de artificialismos e descrenças, fermenta a utopia... por isso continuamos a acreditar na poesia, meu amigo!

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  7. Susanna, claro que existe esse aspecto que você apontou: a década de 80 foi o período de nossa juventude, quando tínhamos vinte e poucos anos, logo, sempre teremos saudade do que vivemos nessa época... mas não é só isso, é também o sentimento de que nós lutamos por um projeto de mudanças concretas que não aconteceu, e hoje, ao contrário, predomina no Brasil o conservadorismo, mesmo no governo Lula (que não privatizou tudo nem acabou com as leis trabalhistas, como Serra faria na presidência, mas também não avançou um milímetro em relação ao governo de FHC: continuou o que havia antes). Sou menos otimista que você em relação à vida cultural em São Paulo. É verdade que há mais cursos, saraus, oficinas e eventos, mas vejo uma política absurda de desperdício de verbas públicas, ou seja, dinheiro dos contribuintes. Por exemplo, quando o governo do PSDB desperdiça 400 mil reais para premiar apenas dois romances, argumentando que isso "estimularia a leitura" (????), ou os milhões de reais desperdiçados com a Virada Cultural, que acontece num único dia... evento populista e de qualidade muitas vezes duvidosa. Este dinheiro todo seria melhor empregado, ao meu ver, na construção de espaços culturais na periferia da cidade, por exemplo, ou no aumento da verba mensal de equipamentos como a Casa das Rosas (que tem um orçamento absurdamente pequeno), ou no apoio a edições de livros de autores estreantes, ou à criação de um suplemento literário como o de Minas Gerais e tantas outras coisas... gastar um dinheirão num único dia me parece comício eleitoral, assim como gravar um CD de poesia brasileira e incluir Serra entre os que recitam... aí é mais grave ainda, é usar diretamente recursos do Estado na campanha eleitoral de um candidato à presidente... beso do

    Claudio

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  8. Nem tudo é como a gente quer ou acredita... e nem tudo acontece como a gente imagina... Não acho que a Virada Cultural seja um desperdício de dinheiro público. Aqui em Rio Preto tb teve a Virada que levou muita gente pra Represa da cidade ouvir música de boa qualidade, para o Teatro Municipal pra ouvir peças clássicas e peças de teatro. Gente que não tem acesso por vários motivos a cinema, teatro e musica, puderam participar. Em SP idem. Quanto ao prêmio, não acho que tenha um alcance como dizem, precisaria fazer uma pesquisa para verificar isso. Mas não seja tão pessimista. As coisas todas se transformam e tomam rumos diferentes. Nem tudo é como a gente quer que seja mesmo, mas podemos continuar a trabalhar para que os rumos possam ser alterados, não é mesmo?

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  9. Susanna, acho a Virada Cultural populista, sim, pois são milhões de reais gastos em um único dia (pobre só deve ir ao teatro uma vez por ano?). Penso que o dinheiro seria melhor aplicado em ações sólidas, continuadas, que criassem uma infra-estrutura de produção e difusão cultural mais eficiente no estado (há várias propostas neste sentido, no manifesto do Movimento Literatura Urgente). Gastar R$ 400 mil para premiar dois romances acho um absurdo, se ficarmos apenas nos prêmios, seria possível contemplar dez livros pelo menos, de prosa e poesia, não? Acho tudo isso marketing eleitoral de um partido, e não política cultural. Não se trata de intransigência, mas de visão política diferente, oposta. Agora, claro, viva a diferença e o debate, seria muito chato se todos pensassem do mesmo modo. Beso do

    Claudio

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