terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A POÉTICA DO JOGO (VI)

A descrição do crime nas páginas finais do romance é alegórica, paródica e não isenta de certo humor negro: a sala do Mestre é convertida numa “gruta” ou “cripta”, que está “toda decorada de pinturas, de retratos de jovens em movimento e em repouso, cândidos e ágeis guerreiros ou poetas ou copeiros do eterno rei Minos”, numa desterritorialização simbólica de tempo e espaço que converte Lisboa na ilha de Creta. A Discípula “aparece agora criselefantina, pronta a dar o salto mortal por cima da cabeça do Mestre” ela “paramenta-se de oiro mas deixa o peito nu porque não há veste mais preciosa do que a pele”. O local onde o Mestre dorme, por sua vez, está “rodeado de todos os seus troféus: discípulos e discípulos mortos estão acumulados aos seus pés. Troféus de caça de toda espécie e armas, redes, laços, fundas, venenos repousam ao seu lado”, numa crítica simbólica à pedagogia como forma de poder. Tal como o Minotauro helênico que devorava as virgens que eram enviadas ritualmente a ele como oferendas, o Mestre se alimentava simbolicamente de seus alunos: “Devorava os discípulos e depois cuspia só aquela grainhazinha deles, quer dizer, aquela mínima porção que não lhe interessava”. A mutação do Mestre em Minotauro e de Lisboa na ilha de Creta desloca a mímese em favor representação alegórica dos eventos, que atinge seu clímax no reflexo especular do assassinato, ou sacrifício ritual: após matar o Mestre com um golpe de punhal no coração, a Discípula (que assume ao mesmo tempo o papel de Ariadne e de Teseu) “resolve olhar para trás para ver pela última vez o Mestre”, num gesto que recorda o de Orfeu e o da mulher de Lot, e vê a si mesma imolada: o Mestre “segura pelos cabelos a cabeça da Discípula. A cabeça da Discípula está trespassada por um punhal enterrado na fronte até ao punho”. Ao destruir aquele a quem ama, ela destrói ao amor e a si mesma.

O jogo da aniquilação recíproca, último lance de uma partida condenada ao fracasso, é prenunciado por outros episódios macabros, inseridos no romance fora de uma ordem cronológica ou de uma seqüência narrativa linear: as ações transcorrem no livro como os movimentos de um sonho, sem uma lógica mimética, tal como vimos em Anacrusa. Estes episódios registram cenas da metamorfose do desejo de fruição erótica num desejo tanático, que sonha com a imolação de si e do outro: no capítulo IV, por exemplo, a Discípula declara que gostaria de enfiar os dentes do Mestre numa fita para colocar em seu pescoço: “De resto foi sempre aí que eu os trouxe, os dentes dele, cravados na minha garganta. É uma maneira de me estrangular com o seu riso. Não creio que ele jamais tenha tido lábios porque lhe eram desnecessários; do que ele precisou sempre foi de dentes, para morder e para rir”. O Mestre é retratado como um gourmet antropófago, “muito voraz”, que “devorava os discípulos”, num festival de iguarias como “mãozinha de discípulo em geléia com molho tártaro” ou ainda ao “molho de vinaigrette” Quando lhe é servida a carne da Discípula, porém, ele não lhe come as mãos, e sim os olhos, “num prato de osso, talvez de marfim. Provavelmente no marfim dos cem vezes trinta e dois dentes da Discípula”. No capítulo VI, em vez do banquete canibalesco, temos uma cena de estrangulamento, em que o Mestre toca o corpo da Discípula não para acariciá-la, mas para torturá-la, numa inversão sádica da atitude erótica: “Entretanto o Mestre vai estrangulando a Discípula, mas todos os mestres estrangulam sempre os seus discípulos de uma maneira ou de outra. Toda aprendizagem é uma forma de estrangulamento de alguma coisa dentro de nós”. A tensão destrutiva entre o Mestre e a Discípula atinge uma dimensão plástica no capítulo IX, que parodia o célebre quadro A lição de anatomia, de Rembrandt (acervo do Mauritshuis, Amsterdã): aqui, porém, é o cadáver do Mestre que se encontra “completamente nu deitado em cima duma mesa de pedra”, onde será analisado pelos estudantes, que passam a ler suas entranhas, nada encontrando além da escuridão (outra metáfora da incomunicabilidade: o corpo do Mestre convertido numa forma de escritura ilegível, um significante sem significado). Esta passagem, de múltiplos significados e camadas de leitura, sintetiza algumas das principais chaves temáticas do romance, presentes ainda em outras obras da autora, e em especial as Tisanas, como a solidão, a impossibilidade do amor e da sabedoria; tudo é um jogo caleidoscópico, desenhos mutáveis e impermanentes, geometria da transmutação. Para representar essa visão da instabilidade e do mal-estar do viver no mundo, regido pela insatisfação, pela divisão interna do indivíduo (representada pela metáfora do Andrógino Potencial, dividido em três partes) e pelo conflito com a ordem estabelecida, Ana Hatherly atualizou os recursos do barroco em diálogo com as poéticas da vanguarda, numa época em que Portugal se debatia entre a continuação de um regime autoritário já anacrônico na Europa e a saudade de um futuro com dimensões utópicas, que inspiraria a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974

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