segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A POÉTICA DO JOGO (V)

O diálogo entre Mestre e Discípula é lúdico: não comunica uma mensagem unívoca, embora opaca, mas dissimula, oculta, deforma ou confunde o sentido, para além das dicotomias entre verdade e mentira, e portanto fora da esfera de recepção de qualquer tipo de conhecimento. O jogo da dissimulação e ocultamento manifesta-se sobretudo na peripécia que transcorre nos episódios do jardim, em que a Discípula persegue furtivamente o Mestre para simular um encontro casual, e ele esquiva-se fingindo ignorar a perseguição, num jogo de avanços e recuos estratégicos, como os movimentos das pedras em um tabuleiro de xadrez. Há um pacto lúdico entre eles, para usarmos uma expressão formulada por Affonso Ávila em seu estudo sobre o jogo no universo barroco. A própria narradora no romance define o jardim como “um lugar de jogo. Pequeno jogo de roda, pequeno duelo ao longe, pequeno torneio futuro, morte dos jogadores, começo de outro jogo, fim de outro jogo etc. nunca mais acaba”.

O espaço dessa aparente brincadeira de esconde-esconde é comparado a um círculo mágico, imagem metafórica que sugere a idéia de labirinto: “A Discípula é muito persistente. Vai todos os dias ao Jardim a ver se o fruto já está maduro. Sai calmamente de fora do círculo mágico para dentro do círculo mágico. Entra no Jardim. Começa olhando agudamente para todos os lados. Desce à direita o desenho grego da calçada e vai até ao fim”. Os movimentos da Discípula nesse campo simbólico recordam a perambulação do peregrino dentro de um labirinto barroco, onde ele teria de enfrentar “os perigos e as dificuldades de percurso” para “atingir a Jerusalém celeste, a cidade de Deus, ou seja, a união com Cristo”, conforme escreveu Ana Hatherly em seu estudo A experiência do prodígio — Bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII. Essa perambulação tinha um caráter iniciático: em sua jornada mística da periferia até o centro da arquitetura simbólica, o peregrino deveria travar um “confronto consigo próprio através dum combate-percurso cujo objetivo é destruir o mal (se no centro estiver um monstro) ou alcançar a salvação (se no centro estiver a Igreja)”.

A Discípula, no início do percurso, encara o Mestre como aquele a quem deseja se entregar, numa união mística (com o sentido de realização e plenitude), como se ele fosse um novo Cristo; num segundo momento, porém, ela o verá como um monstro, o Minotauro a quem é preciso matar (o que causará sua própria destruição), após perceber que o amor entre eles não é realizável, e tampouco a sabedoria ou a alegria. Silvina Rodrigues Lopes observou que “O tema do desencontro amoroso”, no romance, “é responsável pela deambulação labiríntica”, em cujo desfecho macabro a Discípula “vê a sua cabeça capturada como um dos troféus do Mestre que acabara de matar”. Ao destruir seu objeto de desejo, convertido em inimigo monstruoso, a Discípula realiza uma ação de natureza simbólica ou arquetípica: nas palavras de Maria Alzira Seixo, neste romance “a única ação é a da morte e mesmo essa é a mitológica, o Mestre-minotauro morto por Ariana-a-Discípula, amante da luz e da verdade e por ele também assassinada”.

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