quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O UNIVERSO DE SENSAÇÕES DA PALAVRA POÉTICA

 










A leitura dos poemas de Jade Luísa oferece ao leitor todo um universo de sensações plásticas e musicais, de finíssima sensibilidade. Ela investe na alquimia do verbo, à maneira de Rimbaud, descobrindo as analogias possíveis entre as imagens do mundo objetivo e as de seu mundo pessoal, habitado por uma singular mitologia. É evidente a proximidade de sua poesia com a estética simbolista de autores como Gilka Machado e Ernâni Rosas, e ainda com a de poetas portugueses contemporâneos, como Herberto Helder e Luiza Neto Jorge, mas a poeta e atriz potiguar revela em sua escrita todo um álbum particular de obsessões, em que encontramos imagens poéticas delirantes como “unhas terrosas”, “coxas falantes”, “sibilo verde-âmbar” e “língua do céu”. A intensa sinestesia poética de Jade Luísa convoca os nossos sentidos para uma experiência quase corporal com a palavra, que transpira como a pele ao sol. No poema Broto, dedicado a Jeannette Priolli, por exemplo, ela escreve: “Gritos férteis coagulam / úvula fêmea se rompe / engole pó e antipalavra // O fogo desponta do seio / chifres na boca do sol / cúrcuma tece a espinha / estiagem da língua // No canteiro do estômago / cultiva crisálidas / com a luz de quando abre a boca. // Em tempo de sangrar, vocifera / O que nasce não é palavra / Não é néctar / É lava”. Jade Luísa domina o instrumento poético e sabe urdir estranhas partituras que nos seduzem, aterrorizam e maravilham. Leiam abaixo três poemas da autora:

 

ECO DE LUSCO-FUSCO

 

Escuto a água arranhando o vidro

Suas unhas rascunham calmaria e flores

Esqueço como a água sente a pele

Esqueço como a água rasga a pele

 

Os dias arranham o vidro

Esfolam as flores que a água rascunhou

Dissipam a face que a noite tingiu

 

O fogo a guerra os mortos, já não os sinto

Eles ainda vivem sob os sulcos do asfalto

Mas eu, tingida de noite, esqueço.

 

CONFESSO DEVANEAR-ME NOS SEUS DENTES

 

Então você olha pras minhas maçãs

e sorri quando percebe que elas ardem

até o pé da orelha,

bem no lugar que você beijou antes de me dizer

mariposas e besouros.

 

Não sinto dor agora, apenas

quando eu me deitar sob as coxias do inverno.

Elas protegem minhas orelhas da sua saliva

mesmo quando eu não peço, mesmo

quando meu anseio maior é me

embaraçar no vazio entre a sua gengiva e a sua

orelha.

 

 

SOBRE MULHER GIGANTE AO DESCOBRIR AS GUELRAS

 

Eu navego mas não como marinheiro

sim como sereia

possuo a força das ondas

me arrebatam as ondas

me carregam as marés e navego

em lonjuras leves de espuma

de crista de onda

 

Possuo males e enganos

nunca como homens ou náufragos

eles que têm medo – e organizam simpósios

e enciclopédias de medo

metrificam o medo

ceiam brindam gozam

e celebram o medo

em folhetins em manifestos

em congressos do medo

 

Eu não naufrago – tenho guelras e seios

minha ciência minha arte

meu alimento meu sexo

são ancestrais:

aprendi com a minha mãe

que aprendeu com a mãe dela

que aprendeu com a mãe dela

os segredos da vida e da morte

 

E como sereia ainda me faço feia

bela apenas pra quem me toca

lhes nego então a dor feia dos olhos

a dor das orelhas

a dor dos dentes

e chupo seus dentes, os faço azul

 

Pois como boa sereia, azul e feia

ser meio peixe meio guelras

meio mulher mãe irmã

meio morte meio sexo

inteiro seio, inteiro astro,

inteira cais, farol e seio

para todas as que se tocam nas redes

afogadas de cabelos limpos, pretos e limpos

Rede runa redário vivo

Toda vida rebenta [e morre]

no seio das sereias.

 

 

 

Agora eu falo pelas coxas.

Sigo contando histórias sobre como estou

cega pela luz da sua garganta

surda pelo som do seu tórax

muda pelo eco das suas pupilas

inerte pela lava que escorre das minhas coxas falantes

entoando elegias por detrás do seu pescoço,

como quem enrola a língua ao sussurrar seu nome.

Baixinho, para que só o desejo possa ouvir.

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