domingo, 23 de agosto de 2020

QUANDO A IMAGEM E A MÚSICA SE FAZEM PENSAMENTO: A POESIA DE LOURENÇA LOU

 


Claudio Daniel


Lourença Lou, poeta mineira, nascida em Belo Horizonte, revela em sua escrita poética uma linguagem substantiva, em tom seco e preciso, mas de alta intensidade emocional, em que ela desenvolve temas relacionados às relações interpessoais, à condição feminina, ao estar no mundo, a situações de poder, ao silêncio, à extinção e ao próprio discurso poético. A poeta utiliza elementos da metáfora, da alegoria, da ironia e do humor cáustico para construir partituras-pinturas do pensamento. Confiram abaixo alguns poemas da autora.


ATO FINAL

quando vieres

ó morte

o que levarei comigo?


talvez um obstinado descaso

pelas falsas carícias da vida

certo estilo no uso

dos saltos a comer calçadas


esta ilimitada admiração

pela coragem de Adélia

no inaudito louvor ao cu

confrontar a moral da igreja

 

me dirás com olhos de brasa:

traga os diários noturnos

que guardam com timidez

a versão de seu sexo felino

 

carregue a áspera meiguice

com que feridas amigas

beijaram-lhe os olhos

deram sentido à sua visão


e esta inveja que te grita

do mais profundo da gaveta

pela rosa de Drummond

e seu amor natural

 

enfim me dirás: esqueça

os cadernos de catecismo

você nunca se preocupou

em fazer malas no dia anterior.

 

 EXPLOSÕES

querem-nos

medo

:

alguma chama

cólera

coração

 

querem-nos 

pausas esparsas

entre risos amarelos

 

embora ignorados

por quem paralisa

nossa respiração

 

ainda podemos provocar

a bomba

que os surpreenderá

 

explosões

transitam em metáforas

da necessária resistência.

 

 CARACÓIS

 a exaurir pensamentos

bebo a noite

em lentos goles de realidade

 

na sem-razão da certeza

ardo estilhaços

do amor onde nunca aportei

 

mergulho em vagas do incorpóreo

e resgato guelras

dos caracóis em que me cultivei.


MURO

sob o esmeril do sol

a caricatura de um homem 

escala o muro


da boca escorre uma baba lassa

no corpo o fardo de seus mil anos 

mal distribuídos na carne desvalida

 

silêncios cochilam na tarde de sábado

um tiro fura a pasmaceira

prega o homem de cara no muro

rigor nos braços

pernas a exaustar o ar

 

mulheres dissimulam medo

crianças arregalam-se 

homens louvam na farda e fuzil

o acato da lei


o amor faltou ao chamado do sábado


no muro o corpo em sangria

como um tiradentes enferrujado

finda a intenção de salvar 

o cão preso nos fios

da garantia do patrimônio


com ganidos de vida partida

um urro de boi no matadouro

alheia-se o sábado de cara no muro.


PERIFÉRICOS

fogos atraídos

pelos estalos da pedra

raios a rabiscar

a mendicidade da rua


vidas a vomitar

enxurradas de delírios

na escuridão

dos estômagos vazios


procissão de mortos vivos

carne rasgada

a percorrer noites em círculos.


DESAGUES

não se desbrava esta mulher

com adornos e vigílias

não se descobre esta mulher

pela atração de seus pecados

não se desveste esta mulher

por seus desagues e fertilidades

precisa-se madurar de vermelho

suas anêmonas e águas vivas

espalhar orgias e espantos e enchentes

nas palpitações de seus lábios todos

amar esta mulher na pungência

e na mística do alimentar de seus seios.


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