segunda-feira, 25 de outubro de 2010

UM POEMA DE JOSÉ KOZER

A MORTE SE DISFARÇA DE MORTE

É hipotética. Provável que não existam nem seu disfarce nem sua figura. Nunca nasceu. Outra de
tantas configurações do desconhecimento: com o
traje de bailarina as pernas longas (dois
caniços) de fuligem; gira e gira sua inexistência
desfazendo inexistência ao redor: vede, duas gotas
de piche (duas pupilas) no cenário. Vede-a,
com seu lenço de erva (beldroega) de nada; seu
chapéu de areia (guirlanda de fuligem) fará crescer uma
planta espessa no meio do nada. Artifício. Biombo.
Colo desnudo; gira, libélulas ósseas. Gira, panegíricos
ao ósseo microorganismo. A letra do desconhecimento
atrás da qual um orifício azul conduz a uma porta
inexistente de azuis desmoronados que se abre a um
corredor gris de pêndulos entrechocando, chispa, brasa,
sujeira (nada) do rastro de uma poeira que
aspira a ser (gris): vede, oráculo da cinza o Disfarce.
Vede, a farinha do outro saco, cinza; o proceloso mar
dos poetas, brasa onde se extingue a inexistência
da noctiluca encharcada em seu nada: velha parelha a
água estagnada e a morte; velho disfarce do fogo essa
velha parelha. Provável que não exista o cravo de papel
da China que adorna sua lapela, a nuvenzinha (fuligem) do
olho mais que provável que não exista: seu olho desatento,
olho da Desouvinte. Clama, e verás. Implora, e o que ouves?
Tira-o da manga de sua túnica com jarreteiras de urina
e verá cair escória de vermes fornicando no meio do
ar sua inexistência: Generala, seu nome. Úvula; ouve seu
silêncio. Parturiente, vede brotar dela por partenogênese
o fio extremo de uma saliva semeada de cinza: boa a
floração (verás). Levanta a cabeça, tira a máscara, rasgue
a teia do olhar, o véu que recobre o órgão real da
visão, e verás: mata o olfato tapa os ouvidos guarda
essas mãos nos bolsos (se não pode contê-las, corte-as):
e o olho só o olho então fixo a olhar (vejas) (e verás)
in extremis, atrás do ícone, a idéia do ícone, e atrás da idéia a
mistura da cinza. Desce à gruta, tua gota com a língua
raspando, deposita: seiva tornada saliva retornada por ação já
atenuada do fogo um alvor de cinza retornado por elaboração
do nada outra poeira de inexistência, verás brotar. Já a vês?
Com seu disfarce de idade inexistente, vestígio indeterminado da
lâmina de relva, fosso para o corpúsculo esvaziado de seu nada, migalha
semeando migalhas de inexistência. Aparece, pijama listrado,
a barba de três dias, o soro gotejando outra obstrução de
urina, outra gama de nada desaparece.

Tradução: Claudio Daniel

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