MATERIAIS
está na oficina e burila o sangue
-- que flores se desenham no ar?
Porém os lógicos dirão o
impossível
A VOZ E O VENTO
com palavras faço a voz
e o vento
de que viajam e são
insistente desejo a lucilar
sobre a pele morna
de girassóis filtrando
teu rosto
seios
paisagem nua de ventre
com palavras a voz do que faço
estes dias infensos
a pendor de gume
* * *
afasto as cortinas da tarde
porque te desejo inteira
no poema
e passas de capulana
teu corpo como as dunas
plantadas de casuarinas
rumorejando perto
a fúria das ondas
caindo brandas
no meu gesto
* * *
ó minha palavra nua
idioma do teu corpo
aqui fundo a raiz
e o espaço
neste ciciado cio
teu monte azeviche
aberto às manhãs
cacimbadas a nervo!
(Do livro Monção, 1980)
ACONTECIMENTO
sobre as espigas trémulas
os pássaros migram
para os meridianos virgens
do teu rosto no vento
a densidade da boca
(Do livro A inadiável viagem, 1985)
* * *
Quero a táctil nervura do teu
corpo
e o ritmo das vozes penetrando-se
a galope sobre o verde.
Trago a pacaça nos dentes e
soletro
a montanha agachada no asfalto.
As casas verdes são húmidas e
verdes.
Verdes os remos com livros no mar.
Verde uivo corre Junho e exaustas
tropeçam as patas do poema
A menina é dos olhos o baço
espelho.
Close-up a golfadas de mênstruo
ainda com putas e açaimos,
quero o verde, os cavalos e os
sapos,
verdes as vogais salgadas e
verdes.
Verde tu, cósmica explosão aberta
no meu peito fulgurando as coisas.
Verdes.
* * *
Sentam-se sob as acácias no
asfalto roto
os mutilados com cigarros de embalar.
Nenhum som os recorta
e todos os sentidos foram amputados.
Nem para a tarde crescem frustrados.
Esperam. Que inconclusa forma
os limita em fórmula de serração?
Que ameaça os delira? Nenhuma flor
explode, poeta, no coração?
Os mutilados sonharão? Suas pernas?
O desejo, fruto pobre adubando. Outra mão?
Que triste palavra os baba
no cigarro morto! Vendem.
Nenhum incesto os estanca.
À revelia do sol, os mutilados
montam banca.
os mutilados com cigarros de embalar.
Nenhum som os recorta
e todos os sentidos foram amputados.
Nem para a tarde crescem frustrados.
Esperam. Que inconclusa forma
os limita em fórmula de serração?
Que ameaça os delira? Nenhuma flor
explode, poeta, no coração?
Os mutilados sonharão? Suas pernas?
O desejo, fruto pobre adubando. Outra mão?
Que triste palavra os baba
no cigarro morto! Vendem.
Nenhum incesto os estanca.
À revelia do sol, os mutilados
montam banca.
MUHÍPITI
É onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
É onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.
É onde deponho todas as armas. Uma palmeira
harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objectos naturais. Uma palmeira
de missangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
É onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na Ilha. Incendiando-nos o nome.
* * *
lha, corpo, mulher. Ilha, encantamento.
Primeiro tema para cantar. Primeira aproximação para ver-te, na carne cansada da
fortaleza ida, na rugosidade hirta do casario decrépito, a pensar memórias,
escravos, coral e açafrão. Minha ilha/vulva de fogo e pedra no Índico
esquecida. Circum-navego-te, dos crespos cabelos da rocha ao ventre arfante e
esculturo-te de azul e sol. Tu, solto colmo a oriente, para sempre de ti exilada.
Foste uma vez a sumptuosidade mercantil, cortesão impossível roçagando-se nas paredes altas dos palácios. Sobre a flor árabe a excisão esboçada com nomes de longe. São Paulo. Fadário quinhentista de «armas e varões assinalados». São Paulo e o rastilho do envangelho nas bombardas dos galeões. São Paulo rosa, ébano, sangue, tinir de cristais, gibões e espadas, arfar de vozes nas alcovas efémeras. Nas ranhuras deste empedrado com torre a escandir lamentos dormirão os fantasmas?Almas minhas de panos e missangas gentis,quem vos partiu o parto em tijolo ficado e envelhecido? Ilha, capulana estampada de soldados e morte. Ilha elegíaca nos monumentos. Porta-aviões de agoirentos corvos na encruzilhada das monções. De oriente a oriente flagelaste o interior da terra. De Calicut e Lisboa a lança que o vento lascivo trilou em nocturnos, espasmódicos duelos e a dúvida retraduzindo-se agora entre campanário e minarete. Muezzin alcandorado, inconquistável. Porque ao princípio era o mar e a Ilha. Sindbad e Ulisses. Xerazzade e Penélope. Nomes sobre nomes. Língua de línguas em Macua matriciadas.
INDICA MISSANGA SOBRE O TEU CORPO
Agora percorro-te pelas artérias de poeira e branco encardido. Pedra obsessiva, vazia, petrificando o tempo. Pedra de mulher mítica, olhando-me. Mulher onde eram as ondas e os pássaros e os barcos
elementares.
E agora fotografo-te em ritmo de coda, em variações batidas pelas veias abertas do teu segredo violado. Usurpado. Acrescentado. Agora, sobre os dias de tédio martelados a luz, de partos povoando-se, da epiderme em grito contra a pedra. Naufrágio de colmo guerrilhando-te os afectos, os amantes em
rotação de geografias, o íman das coifas e das desembainhadas, tesas baionetas.
Agora possuo-te. Perco-te. A minha boca em Macua perguntando-te como se diz «bom dia», neste articulado silêncio de arquitecturas que em quotidiano caminhar cruzo, tu cruzas, entre levas de intestino e fome. Como um distúrbio da grandeza maior que te cobre.
Agora eu, moçambicana concha, madeirame de açoitada nau escorando-me os músculos, indica missanga perdida, sobre o teu corpo, minha mulher, minha irmã, minha mãe, percorro-te. Sou.
(Do livro Vinte e tal novas formulações e uma elegia
carnívora, 1991)
CHAGALL
a Lagosta alando-se
ao flanco mais lúcido das estrelas,
mestre, esta é a casa
ou só silêncio em percussão de formas,
Rumor de virgens
sagrando de mênstruo as raízes
(Do livro Mariscando
luas, 1992)
ELEGIA DO NILO
Diante das ruínas de Karnak,
como sobes, visto daqui, das águas obscuras
Onde Ogum verteu suas lágrimas e cantou
O sulco vindouro, persistente e duro caminhante
De sul para norte sobre as areias, rasgando a volúvel pele
Dos deuses.
Reis e templos, em tuas margens ordenaram o mundo
Entre cada ciclo solar, suspensos do fim;
E louvo a cidade dos que partiram, o fluxo da pedra
que ainda sustém a geometria do eterno
emergindo da tua indiferença;Tu, que escondes os gatos
imóveis e os sabes para sempre espíritos soltos, eriçados; e te deleitas,
vendo-os na ronda dos desenhos enigmáticos, anichando-se junto aos
Sarcófagos que extrapolam de Ti, como se o teu leito derramado
Tivesse soerguido, da solidão granular, o perfil oblongo
Da cabeça de Nefertiti e Te espojasses na beleza efémera
Dos esponsais da Carne;
Ó matéria perecível que as ânforas guardam, aguardam,
Nós que perdemos o divino selo das libações inaugurais e salmodiamos,
No medo litúrgico da palavra esquecida, o simulacro do Livro
E a salvação dos mortos;
O que subia deles, extirpadas as vísceras, iluminados pelo ouro e a água
De que eras a substância!
Desceram as noites e o desmundo bebeu nas tuas margens
Enquanto Tu cantavas e era de ti o canto
Moldando a forma, lacerando as cidades e erguendo-as,
Com nossos pés descalços sobre a erva, acocorados
E breves, uma inscrição de sangue diluindo-se
Até ao mar.
(Do livro O osso
côncavo e outros poemas, 2004)
Luís Carlos Patraquim nasceu em Lourenço Marques
(atual Maputo), em 1953. Refugiou-se na Suécia, em 1973, por motivos políticos.
Regressou ao país em 1975, ingressando no jornal A Tribuna. Membro do
núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique) e do Instituto
Nacional de Cinema (INC), atuou, de 1977 a 1986, como roteirista / argumentista e
redator do jornal cinematográfico Kuxa
Kanema. Foi o criador e coordenador
da Gazeta de Artes e Letras (1984/86)
da revista Tempo. Desde 1986 reside em Portugal. Publicou,
entre outros títulos, Monção (1980), A Inadiável Viagem (1985), Vinte e tal novas formulações e uma
elegia carnívora (1992), Lidemburgo
Blues (1997) e O Osso Côncavo (2005). Recebeu o Prêmio
Nacional de Poesia de Moçambique, em 1995.
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