terça-feira, 20 de outubro de 2015

SOBRE A "LITERATURA DE MERCADO"

Há literatura de entretenimento de qualidade? Sim, há. Escritores que se dedicaram à ficção científica, ao terror, ao romance policial ou de aventura, como H. P. Lovecraft, H. G. Wells, Julio Verne, Ray Bradbury, Conan Doyle, Alexandre Dumas, para citar poucos exemplos, criaram obras originais, com enredos que anteciparam invenções e descobertas científicas que aconteceriam muito tempo depois, como os submarinos e a viagem à lua, ou que ainda não ocorreram, como o deslocamento para outras dimensões do tempo. Não se trata, é claro, de obras com a mesma densidade psicológica de Dostoievski, com a riqueza da investigação social de Balzac ou com a violenta novidade formal de Joyce, mas são bem construídas, prendem a atenção do leitor ingênuo ou culto (Jorge Luis Borges amava Robert Louis Stevenson, autor de A Ilha do Tesouro) e conseguiram passar pelo crivo do mais severo dos críticos literários, o Senhor Tempo. 
 
OUTRA COISA, totalmente diferente, é a "literatura de mercado" promovida pela mídia, grandes livrarias e editoras, como a Companhia das Letras, que não tem a mesma originalidade temática de um Júlio Verne ou de um H. G. Wells, nem preocupações de ordem filosófica, estética ou social, mas que é maquiada para ser apresentada ao público como se fosse "grande literatura". Nisso reside a sua essencial mentira: não estamos falando aqui de obras que acrescentam alguma coisa à tradição literária, em geral elas apenas repetem clichês sobre a violência urbana, o misticismo, a sexualidade, conflitos culturais ou supostos dramas existenciais com a leveza e descompromisso de uma crônica de jornal ou livro de autoajuda. São publicações para serem lidas no salão de cabeleireiro, no consultório da psicanalista, no metrô, na fila do banco, e depois emprestadas a um amigo e completamente esquecidas. Não têm substância que permaneça, que mereça releitura, para a descoberta de outras camadas de significados ou para o reencantamento dos sentidos, pelo prazer estético do texto. São livros realmente ruins. 

Sem dúvida, é possível argumentar que essa avaliação depende também de critérios de gosto, que é subjetivo, ou de modelos teóricos da crítica literária. Neste caso, podemos contra-argumentar apresentando a seguinte comparação: um livro como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, foi publicado em capítulos na imprensa diária da época, há mais de cem anos – logo, havia um propósito comercial nessa literatura – mas ainda hoje é lido e estudado, por sua imensa riqueza formal e imaginativa; alguém acredita, sinceramente, que o romance de Fernanda Torres será lembrado daqui a cinco anos, ou mesmo cinco meses? Não há nenhum mal na diversidade de estilos, gêneros e técnicas literárias, não há nenhum mal num escritor pensar deliberadamente em escrever obras de entretenimento, para obter retorno financeiro, quando suas obras são bem escritas (pensemos no caso de Edgar Allan Poe, criador da literatura policial). 

O problema ético, literário e cultural, em minha opinião, acontece quando a “literatura de mercado” monopoliza a atenção da mídia, se impõe ao leitor pelo lobby de grandes editores e livreiros, obtém o favor de concursos, bolsas e editais, pelo poder de fogo da indústria cultural, acaba sendo reconhecida inclusive pelo Ministério da Cultura e secretarias estaduais, em detrimento da literatura séria produzida por poetas, contistas, romancistas ou dramaturgos que não compactuam com o mercado e produzem obras densas e inventivas que são recusadas pelo lobby da indústria cultural. Não existe igualdade de oportunidades porque o livro que saiu pela pequena editora não terá o mesmo espaço, na vitrine da Livraria Cultura, que o título publicado pela Cosac & Naif ou pela Record, não terá resenha ou mesmo notinha nos jornais, não será comprado pelos órgãos públicos para ser distribuído em bibliotecas escolares e raramente receberá prêmios ou bolsas em concursos. É uma literatura que já nasce com o estigma de “difícil”, “não comercial”, portanto, à margem do sistema. É negada a igualdade de oportunidades e, assim, é negada a liberdade de escolha do leitor: o mercado impõe aquilo que bem entende, com uma imensa rede de apoio pública e privada, e assim implanta a massificação, a boçalização da sensibilidade. Quem perde com isso? Os escritores, os leitores, a literatura e a construção da memória e da cultura nacional. 

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