Há literatura de entretenimento de qualidade? Sim, há. Escritores que se
dedicaram à ficção científica, ao terror, ao romance policial ou de
aventura, como H. P. Lovecraft, H. G. Wells, Julio Verne, Ray Bradbury,
Conan Doyle, Alexandre Dumas, para citar poucos exemplos, criaram obras
originais, com enredos que anteciparam invenções e descobertas
científicas que aconteceriam muito tempo depois, como os submarinos e a
viagem à lua, ou que ainda não ocorreram, como o deslocamento para
outras dimensões do tempo. Não se trata, é claro, de obras com a mesma
densidade psicológica de Dostoievski, com a riqueza da investigação
social de Balzac ou com a violenta novidade formal de Joyce, mas são bem
construídas, prendem a atenção do leitor ingênuo ou culto (Jorge Luis
Borges amava Robert Louis Stevenson, autor de A Ilha do Tesouro) e
conseguiram passar pelo crivo do mais severo dos críticos literários, o
Senhor Tempo.
OUTRA COISA, totalmente diferente, é a "literatura de
mercado" promovida pela mídia, grandes livrarias e editoras, como a
Companhia das Letras, que não tem a mesma originalidade temática de um
Júlio Verne ou de um H. G. Wells, nem preocupações de ordem filosófica,
estética ou social, mas que é maquiada para ser apresentada ao público
como se fosse "grande literatura". Nisso reside a sua essencial
mentira: não estamos falando aqui de obras que acrescentam alguma coisa à
tradição literária, em geral elas apenas repetem clichês sobre a
violência urbana, o misticismo, a sexualidade, conflitos culturais ou
supostos dramas existenciais com a leveza e descompromisso de uma
crônica de jornal ou livro de autoajuda. São publicações para serem
lidas no salão de cabeleireiro, no consultório da psicanalista, no metrô,
na fila do banco, e depois emprestadas a um amigo e completamente
esquecidas. Não têm substância que permaneça, que mereça releitura, para
a descoberta de outras camadas de significados ou para o reencantamento
dos sentidos, pelo prazer estético do texto. São livros realmente
ruins.
Sem dúvida, é possível argumentar que essa avaliação depende
também de critérios de gosto, que é subjetivo, ou de modelos teóricos da
crítica literária. Neste caso, podemos contra-argumentar apresentando a
seguinte comparação: um livro como Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, foi publicado em capítulos na imprensa diária da
época, há mais de cem anos – logo, havia um propósito comercial nessa
literatura – mas ainda hoje é lido e estudado, por sua imensa riqueza
formal e imaginativa; alguém acredita, sinceramente, que o romance de
Fernanda Torres será lembrado daqui a cinco anos, ou mesmo cinco meses?
Não há nenhum mal na diversidade de estilos, gêneros e técnicas
literárias, não há nenhum mal num escritor pensar deliberadamente em
escrever obras de entretenimento, para obter retorno financeiro, quando
suas obras são bem escritas (pensemos no caso de Edgar Allan Poe,
criador da literatura policial).
O problema ético, literário e cultural,
em minha opinião, acontece quando a “literatura de mercado” monopoliza a
atenção da mídia, se impõe ao leitor pelo lobby de grandes editores e
livreiros, obtém o favor de concursos, bolsas e editais, pelo poder de
fogo da indústria cultural, acaba sendo reconhecida inclusive pelo
Ministério da Cultura e secretarias estaduais, em detrimento da
literatura séria produzida por poetas, contistas, romancistas ou
dramaturgos que não compactuam com o mercado e produzem obras densas e
inventivas que são recusadas pelo lobby da indústria cultural. Não
existe igualdade de oportunidades porque o livro que saiu pela pequena
editora não terá o mesmo espaço, na vitrine da Livraria Cultura, que o
título publicado pela Cosac & Naif ou pela Record, não terá resenha
ou mesmo notinha nos jornais, não será comprado pelos órgãos públicos
para ser distribuído em bibliotecas escolares e raramente receberá
prêmios ou bolsas em concursos. É uma literatura que já nasce com o
estigma de “difícil”, “não comercial”, portanto, à margem do sistema. É
negada a igualdade de oportunidades e, assim, é negada a liberdade de
escolha do leitor: o mercado impõe aquilo que bem entende, com uma
imensa rede de apoio pública e privada, e assim implanta a massificação,
a boçalização da sensibilidade. Quem perde com isso? Os escritores, os
leitores, a literatura e a construção da memória e da cultura nacional.
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