quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A LÍRICA ANARCOPUNK DE DELMO MONTENEGRO





















Delmo Montenegro publicou em 2003 o seu livro de estreia, Os jogadores de cartas, poema longo que mescla narrativa histórica, mitologia, crítica política, drama teatral e sátira do discurso da alta cultura. Seguindo o conceito do poeta norte-americano Edgar Allan Poe, para quem o poema longo é uma sucessão de poemas breves, Delmo Montenegro constroi seu livro inaugural como uma sequência fragmentária e descontínua de elementos verbais e visuais, utilizando diferentes tipologias de letras e recursos de espacialização de palavras e linhas, à maneira do Lance de dados de Mallarmé, que funcionam como a notação em uma partitura musical, indicando pausas, ênfases, mudanças de timbre, materializadas na oralização. A dicção do poeta pernambucano é paródica, captura e amplia diversas vozes, a melopeia simbolista, o jorro semântico beatnik e certo brutalismo expressionista, como podemos ler nestas linhas: “nos túneis de horror materno / nós caminhamos / por ordem da rainha de Bethsabath / (...) tateando pelo escuro pelas fossas / pelo sol pútrido das fezes / caduceu das moscas / avançamos / pelo Horror disforme / em nossas máscaras”. O jogo paródico e polifônico é reforçado pela colagem de desenhos e ilustrações que funcionam como ready made dadaístas, assim como as citações de personagens históricos e mitológicos de diversos tempos e espaços, reais e imaginários. Todas essas citações têm evidente caráter lúdico e compõem uma alegoria jocosa e cruel da jornada humana.

Ciao cadáver, segundo livro de Delmo Montenegro, publicado em 2005, com projeto gráfico de Jorge Padilha, investe em outra estratégia criativa, apresentando poemas de arquitetura minimalista que exploram recursos semânticos como neologismos, arcaísmos, termos científicos extraídos da medicina e da biologia e vocábulos estrangeiros para a criação de teratologias que recordam a pintura de Pieter Bruegel ou Hieronymus Bosch: “luxo-caveira”, “mandíbula-bistrot: vagina”, “achtung-esqueleto”, “cobra-caveira”, “pirâmide fecal”.  É uma poesia altamente concentrada, com ecos evidentes da música erudita de vanguarda – Boulez, Stockhausen, Varèse, Cage –, porém, não deve ser identificada com alguma forma de poesia pura ou abstrata, alheia aos acontecimentos no mundo, bem ao contrário; trata-se de uma poesia crítica, tanto às formas consolidadas do discurso quanto à própria realidade, crítica que se concretiza em compactas metáforas como “latão-ônix-pesadelo”, “televisão-diapasão-diarreia”, “língua-porco-crematório”, “aracnoacordedestempero”. Ciao cadáver tem uma dicção anarcopunk habitada por pesadelos de Francis Bacon ou fantasmas de Franz Kafka, em que o próprio lirismo se transfigura em cenários hellraiser, como nestas linhas da composição intitulada ausência: tálamo-caveira-canto (para greta): “um leque / esqueleto-cobre: / rizoma-de-dores (maria / erêndira / recostada) ossuário- / fragonard / pânico da língua / vestes / sob vestes / : ali (ônfalo-angústia- / cachalote) sobrescreves / beleza-máscara”.   

Em seu livro mais recente, Recife no hay, publicado em 2013 e vencedor do I Prêmio Pernambuco de Literatura, Delmo Montenegro retorna a um discurso mais linear, porém, mantém a ironia, o sarcasmo e o humor negro já presentes em seus livros anteriores, em versos como estes: “vamos para a praia dos nervos / para as geleiras / infames / desossar orquídeas / montar na prancha dos assassinos / o grande / kahuna / espera / por / nós”. Em outra composição, intitulada os dinossauros, o poeta pernambucano escreve: “poetas são como / dinossauros / todos vão ser extintos / de uma hora / pra outra, todos / sem exceção / guarde o seu lote / na cratera / de / Chicxulub”.  A virulência satírica, mais visível neste volume que nos anteriores, aproxima Delmo Montenegro da tradição marginal de poetas como Roberto Piva, Sebastião Nunes e Glauco Mattoso, linha criativa diversa do construtivismo de Ciao cadáver mas com o mesmo potencial subversivo em relação às “boas maneiras” do verbo. Outro aspecto que chama a atenção em Recife no hay são as narrativas poéticas, a meio fio entre a fabulação e o canto dissonante, como por exemplo nesta peça, de alto impacto: “sim, seremos amantes / solte sua voz / valvulada / durma comigo / seja meu cadáver esta noite / depois / ponha / os cílios postiços / e / desapareça / sem amor, sem paradas cardíacas / sejamos / apenas / dóceis animais empalhados / -- ouça agora, revolva agora -- / meu / nome /é / cão / -- abra meu zíper // / palhas”.

(Artigo de Claudio Daniel  publicado na edição de outubro da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)

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