Delmo Montenegro publicou em 2003 o seu livro de estreia, Os
jogadores de cartas, poema longo que mescla narrativa histórica, mitologia,
crítica política, drama teatral e sátira do discurso da alta cultura. Seguindo
o conceito do poeta norte-americano Edgar Allan Poe, para quem o poema longo é
uma sucessão de poemas breves, Delmo Montenegro constroi seu livro inaugural
como uma sequência fragmentária e descontínua de elementos verbais e visuais,
utilizando diferentes tipologias de letras e recursos de espacialização de
palavras e linhas, à maneira do Lance de dados de Mallarmé, que
funcionam como a notação em uma partitura musical, indicando pausas,
ênfases, mudanças de timbre, materializadas na oralização. A dicção do poeta pernambucano
é paródica, captura e amplia diversas
vozes, a melopeia simbolista, o jorro semântico beatnik e certo
brutalismo expressionista, como podemos ler nestas linhas: “nos túneis de
horror materno / nós caminhamos / por ordem da rainha de Bethsabath / (...)
tateando pelo escuro pelas fossas / pelo sol pútrido das fezes / caduceu das
moscas / avançamos / pelo Horror disforme / em nossas máscaras”. O jogo
paródico e polifônico é reforçado pela colagem de desenhos e ilustrações que
funcionam como ready made dadaístas, assim como as citações de personagens
históricos e mitológicos de diversos tempos e espaços, reais e imaginários. Todas
essas citações têm evidente caráter lúdico e compõem uma alegoria jocosa e
cruel da jornada humana.
Ciao cadáver, segundo livro de Delmo Montenegro,
publicado em 2005, com projeto gráfico de Jorge Padilha, investe em outra
estratégia criativa, apresentando poemas de arquitetura minimalista que
exploram recursos semânticos como neologismos, arcaísmos, termos científicos
extraídos da medicina e da biologia e vocábulos estrangeiros para a criação de
teratologias que recordam a pintura de Pieter Bruegel ou Hieronymus Bosch:
“luxo-caveira”, “mandíbula-bistrot: vagina”, “achtung-esqueleto”,
“cobra-caveira”, “pirâmide fecal”. É uma
poesia altamente concentrada, com ecos evidentes da música erudita de vanguarda
– Boulez, Stockhausen, Varèse, Cage –, porém, não deve ser identificada com
alguma forma de poesia pura ou abstrata, alheia aos acontecimentos no mundo,
bem ao contrário; trata-se de uma poesia crítica, tanto às formas consolidadas
do discurso quanto à própria realidade, crítica que se concretiza em compactas
metáforas como “latão-ônix-pesadelo”, “televisão-diapasão-diarreia”, “língua-porco-crematório”,
“aracnoacordedestempero”. Ciao cadáver tem uma dicção anarcopunk
habitada por pesadelos de Francis Bacon ou fantasmas de Franz Kafka, em que o
próprio lirismo se transfigura em cenários hellraiser,
como nestas linhas da composição intitulada ausência:
tálamo-caveira-canto (para greta):
“um leque / esqueleto-cobre: / rizoma-de-dores (maria / erêndira / recostada)
ossuário- / fragonard / pânico da
língua / vestes / sob vestes / : ali (ônfalo-angústia- / cachalote)
sobrescreves / beleza-máscara”.
Em seu livro mais recente, Recife
no hay, publicado em 2013 e vencedor do I Prêmio Pernambuco de Literatura,
Delmo Montenegro retorna a um discurso mais linear, porém, mantém a ironia, o
sarcasmo e o humor negro já presentes em seus livros anteriores, em versos como
estes: “vamos para a praia dos nervos / para as geleiras / infames / desossar
orquídeas / montar na prancha dos assassinos / o grande / kahuna / espera / por
/ nós”. Em outra composição, intitulada os
dinossauros, o poeta pernambucano escreve: “poetas são como / dinossauros /
todos vão ser extintos / de uma hora / pra outra, todos / sem exceção / guarde
o seu lote / na cratera / de / Chicxulub”.
A virulência satírica, mais visível neste volume que nos anteriores,
aproxima Delmo Montenegro da tradição marginal de poetas como Roberto Piva,
Sebastião Nunes e Glauco Mattoso, linha criativa diversa do construtivismo de Ciao cadáver mas com o mesmo potencial subversivo
em relação às “boas maneiras” do verbo. Outro aspecto que chama a atenção em Recife
no hay são as narrativas poéticas, a meio fio entre a fabulação e o canto
dissonante, como por exemplo nesta peça, de alto impacto: “sim, seremos amantes
/ solte sua voz / valvulada / durma comigo / seja meu cadáver esta noite /
depois / ponha / os cílios postiços / e / desapareça / sem amor, sem paradas
cardíacas / sejamos / apenas / dóceis animais empalhados / -- ouça agora,
revolva agora -- / meu / nome /é / cão / -- abra meu zíper // / palhas”.
(Artigo de Claudio
Daniel publicado na
edição de outubro da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA)
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