ALEPH
rastro de luz absorvida pelas
ásperas formigações da cratera, sua mão esconjurada se contorce entre
embriões, frascos e oblíquas vidraças – seu sangue que agora parece submergir
numa tênue bolha d’água ainda se incrusta com as raízes da recém-nascida massa
– e tudo escorre nessa rústica tecedura de pálidos borrões, nesse ofuscante
zênite de rumores
COMO SE UM SURDO ESTREMECIMENTO
pudesse arrancar-lhe a voz que no
fundo das gramíneas vacilantes se encasula e se encobre, como se nesse
intervalo de incubações as raposas se agitassem no alto das copas de um
pinheiro com súbitos escândalos ao lado das areias, nuvens, escamas, folhas,
estradas, cinzas, manchas, trilhas, ecos, sementes, lascas, aços, pedras,
espelhos, galhos, arcos, cílios, papoulas, flancos, cascos, desertos, algas,
ídolos, êxodos, insônias, vidros, insetos, ilhas, plumas, cardumes, glóbulos,
poros, renúncias, fissuras, páginas, rios, clavículas, riscos, silvos,
aquários, quedas, ossos, cipós, trapos, ruídos, fivelas, alças, telhas,
vértebras, laços e fiapos
quando todas as fibras se retesam
em círculos impróprios quando todas as tábuas se dividem por entre as malhas de
carbono quando todos os movimentos se recurvam até o vértice da constelação
quando todas as palavras se desprendem dos seus próprios invólucros quando todo
ouro é transposto ao fundo do invisível quando toda pele se desfaz e se refaz
em concêntricas colunas quando todos os micróbios se encarregam de conduzir o
sopro da vida quando todas as luzes e sombras se rebatem contra o teto quando
todas as janelas desabam lentamente ao longo da avenida iluminada
enquanto eu e você escutamos
aquela fera de narinas obtusas enquanto as áridas flechas de gelo atropelam o
perfume das sacadas enquanto as asas retilíneas se alongam sob as estreitas
películas enquanto começamos a duvidar de todas as aventuras e tragédias
enquanto meus olhos translúcidos se fecham pouco a pouco enquanto seu reflexo
se eleva ao limiar de um recomeço improvável enquanto os pensamentos se
flagelam contra as brasas e as têmporas se estendem aos astros insufláveis
UM RIO DE AMÊNDOAS
espalha-se no leito dos sulcos,
um rio que sobe e desce, como animal intocável, signo recoberto pelas insígnias
da fuligem, ronronando debaixo das calçadas, dos ladrilhos e das embocaduras,
relíquia-faca, gesto-hiato, susto-império
COMO SE UM FEIXE DE LUZ
pudesse atravessar-lhe o peito
que na superfície das rochas enrugadas se desvela e se descobre, assim como se
nesse ponto dourado os olhos pudessem apalpar a tímida e sonora rachadura que
arde e retorce e repousa sob os inúmeros algarismos
com suas chamas que se
resguardam com seus truques impassíveis com suas litografias impalpáveis com
seus calcanhares que se empalidecem com suas ébrias efemeridades com seus cegos
rangidos com seus gritos que se emudecem com suas imprecisas caminhadas com
seus suores desvalidos com seus versos quiromânticos com seus lábios
inalcançáveis com suas pálpebras insolúveis com seus dedos intangíveis com suas
válvulas que se intumescem
como se ainda em convulsões cada
estrela fosse uma abrupta circunferência daquilo que jamais se nomeia
nessa voragem em que relampeja o
bico das armaduras durante a invasão de cada pedaço onde o assobio do cristal é
quase uma nuvem-esgrima
apesar de que nascemos e morremos
sem que nenhum de nós possa guardar consigo a relíquia da difusa claridade que
resplandece diante de nossos olhos
apesar de que toda rosa se
desvanece e nenhuma luz se revela no meio da balbúrdia quando alguns pássaros
crucificados começam a dançar em torno das clareiras
apesar de que nenhuma alma se
entrega ao corpo desenganado quando ninguém sonha na expiação do enxofre e
nunca eu mesmo fui capaz de compreender minha própria insignificância
apesar de que nem seríamos
corajosos a ponto de acariciar aquela cordilheira longínqua e tampouco isso
faria a mínima diferença já que um chimpanzé saltaria de um prédio a outro num
milésimo de segundo
apesar de que nem todo fogo
poderá ser apagado pela velocidade do córrego assim como jamais o medo será
extirpado de nossos pensamentos enquanto os músculos se revigoram em diversas
gotículas numa espécie de transbordamento incessante
apesar de que algumas linhas
esgarçadas se recompõem à margem dos contornos imponderáveis quando são
açoitadas numa turbulência sem volta e assim se precipitam em inúmeras
verticalidades
apesar de que a sombra por onde
se infiltra o acaso jamais continuará sendo a mesma e por isso aquela porta vislumbrada
em seu perfil poderá se desmanchar numa figura incognoscível
com rasgos e viscos e larvas e
lírios
e fios e fendas e joelhos e
cordas
com varetas e tijolos e
presilhas e joias
e papéis e cartões e anéis e
assoalhos
com chicotes e braços e motores
e cadarços
e tesouras e xícaras e réguas
e relógios
com sedas e quadros e ímãs e
agulhas
e sacos e grampos e trincas e
bússolas
com sinos e alumínios e calças
e bicicletas
e palitos e livros e escoras e
andrajos
com flocos e discos e rastros
e espinhos
e hélices e ovários e luvas e
gessos
com vasos e gases e ruínas e
rosas
e roncos e relinchos e berros
e arrepios
com tudo que pode se dispersar em
ralos com tudo que pode se dissolver em ondas com tudo que pode se destrincar
sob os muros com tudo que pode se desembaraçar atrás de cordões
com tudo que pode se destravar
por meio de parafusos com tudo que pode se descolar em trombas com tudo que
pode se desembocar em frotas com tudo que pode se despovoar no meio de tropas
com tudo que pode se desmentir em
gestos com tudo que pode se desfazer em imagens com tudo que pode se
descosturar em escórias com tudo que pode se desmembrar em membranas
com tudo que pode se desarranjar
por meio das erosões com tudo que pode se desalojar após as explosões com tudo
que pode se desencravar em escarificações com tudo que pode se desossar com a
ferrugem
com tudo que pode se dissipar em
ceras com tudo que pode se desandar em rodas com tudo que pode se destrancar em
ruas com tudo que pode se desenredar em feiúras
com tudo que pode se desamarrar
em escadarias com tudo que pode se despencar atrás das portinholas com tudo que
pode se desatrelar em troças com tudo que pode se desvelar em vórtices
com tudo que pode se desatar
acima das violas com tudo que pode se desdizer com astúcias com tudo que pode
se desprender com alicates com tudo que pode se desarticular em restos
com tudo que pode se desalinhar
atrás das grades com tudo que pode se deslizar acima das traves com tudo que
pode se desaprumar das cadeiras com tudo que pode se desanuviar no centro das
tempestades
com tudo que pode se descuidar
após a saciedade com tudo que pode se despregar atrás das estantes com tudo que
pode se desdourar em demônios com tudo que pode se destroçar com miolos
com tudo que pode se desaguar
sobre formigas com tudo que pode se dissecar em parábolas com tudo que pode se
desacreditar em fábulas com tudo que pode se desferir em frestas
ENQUANTO UMA GARGANTA SE RETORCE
e a gralha desce da nuvem
e nenhum orvalho atravessa o
campo
ENQUANTO UM ADORMECIDO SE ERGUE
e o outono se deita sob as rosas
e nenhum rosto amanhece
ENQUANTO UM CASCO SE DESESPERA
e o ruído enrouquece
e nenhuma sombra se apaga
ENQUANTO UMA LÁSTIMA SE FAZ AUSENTE
e a curva estremece
e nenhum soldado se condensa
ENQUANTO UM VASO SE ENRAIVECE
e o galo acende sua crista
e nenhum estábulo desmorona
ENQUANTO UM OLHO SE APROXIMA
e o vício amadurece
e nenhum escaravelho se silencia
ENQUANTO UMA VOZ SE ESPALHA
e o mundo se contrai
e nenhum artifício aniquila
ENQUANTO UM MURO SE MULTIPLICA
e o rosto se mumifica
e nenhuma teia ilumina
ENQUANTO UM TANQUE SE ENRIJECE
e a mesa se congela
e nenhum sono anoitece
os túneis, as escrivaninhas e as
escumadeiras começam a se enlaçar ao redor das axilas tal como se antes nunca
houvesse ocorrido aquele entrecruzamento de nódoas esfomeadas
quando um vestido se estilhaça
sobre os terraços suspendendo-se contra aquela inversão que acaba de ser
expelida através das entranhas
ou como se tudo pudesse retornar
à sua nulidade inesperada atravessando o deserto das cloacas ainda que nem toda
terra seja restituída à sua forma primordial
como aquele rosto a dissolver-se
com as suas minúsculas ventosas para além do centro da sala e nunca mais
permanecesse encerrado em sua própria moldura
à semelhança daquela abóbada
seviciada que recomeça a trajetória acima dos gestos de um ancião eclodindo em
mil fagulhas de aço
enquanto as ventanias ainda
resistem no insoldável nódulo das imensas cavidades da casa de alvenaria ao
mesmo tempo que os quartzos gemem de ponta a ponta na infame réstia de
percevejos onde debaixo do olho da tristeza a porta do saguão se pulveriza
e todos cães emplumados se
inclinam contra os degraus enfurecidos tal como se a maçaneta se retorcesse num
murmúrio incompreensível de algumas cutiladas sonolentas no instante em que
balbuciamos as intermitências de uma língua absolvida
como se um leve relampejar
pudesse arrancar-lhe a mão que no fundo dos lajedos se enclausura e nessa
efusão de manchas uma minúscula orla esbranquiçada se atirasse contra seu rosto
e assim pouco a pouco o
devolvesse ao céu crivado de artérias enquanto um sorriso se derrama no
interior da vasilha desconsolada
tal como se um grito escarrado se
sonhasse para fora de si quando somos compelidos a esculpir a cada noite por
mais breve que seja a vida no estreito cadafalso do vento
(Poemas do livro Metacorporeidade, de Chiu Yi Chih. São
Paulo: Córrego, 2015.)
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