quinta-feira, 29 de outubro de 2015

POEMAS DE CHIU YI CHIH



 












 ALEPH

rastro de luz absorvida pelas ásperas formigações da cratera, sua mão esconjurada se contorce entre embriões, frascos e oblíquas vidraças – seu sangue que agora parece submergir numa tênue bolha d’água ainda se incrusta com as raízes da recém-nascida massa – e tudo escorre nessa rústica tecedura de pálidos borrões, nesse ofuscante zênite de rumores


COMO SE UM SURDO ESTREMECIMENTO

pudesse arrancar-lhe a voz que no fundo das gramíneas vacilantes se encasula e se encobre, como se nesse intervalo de incubações as raposas se agitassem no alto das copas de um pinheiro com súbitos escândalos ao lado das areias, nuvens, escamas, folhas, estradas, cinzas, manchas, trilhas, ecos, sementes, lascas, aços, pedras, espelhos, galhos, arcos, cílios, papoulas, flancos, cascos, desertos, algas, ídolos, êxodos, insônias, vidros, insetos, ilhas, plumas, cardumes, glóbulos, poros, renúncias, fissuras, páginas, rios, clavículas, riscos, silvos, aquários, quedas, ossos, cipós, trapos, ruídos, fivelas, alças, telhas, vértebras, laços e fiapos

quando todas as fibras se retesam em círculos impróprios quando todas as tábuas se dividem por entre as malhas de carbono quando todos os movimentos se recurvam até o vértice da constelação quando todas as palavras se desprendem dos seus próprios invólucros quando todo ouro é transposto ao fundo do invisível quando toda pele se desfaz e se refaz em concêntricas colunas quando todos os micróbios se encarregam de conduzir o sopro da vida quando todas as luzes e sombras se rebatem contra o teto quando todas as janelas desabam lentamente ao longo da avenida iluminada

enquanto eu e você escutamos aquela fera de narinas obtusas enquanto as áridas flechas de gelo atropelam o perfume das sacadas enquanto as asas retilíneas se alongam sob as estreitas películas enquanto começamos a duvidar de todas as aventuras e tragédias enquanto meus olhos translúcidos se fecham pouco a pouco enquanto seu reflexo se eleva ao limiar de um recomeço improvável enquanto os pensamentos se flagelam contra as brasas e as têmporas se estendem aos astros insufláveis


UM RIO DE AMÊNDOAS

espalha-se no leito dos sulcos, um rio que sobe e desce, como animal intocável, signo recoberto pelas insígnias da fuligem, ronronando debaixo das calçadas, dos ladrilhos e das embocaduras, relíquia-faca, gesto-hiato, susto-império


COMO SE UM FEIXE DE LUZ

pudesse atravessar-lhe o peito que na superfície das rochas enrugadas se desvela e se descobre, assim como se nesse ponto dourado os olhos pudessem apalpar a tímida e sonora rachadura que arde e retorce e repousa sob os inúmeros algarismos

com suas chamas que se resguardam com seus truques impassíveis com suas litografias impalpáveis com seus calcanhares que se empalidecem com suas ébrias efemeridades com seus cegos rangidos com seus gritos que se emudecem com suas imprecisas caminhadas com seus suores desvalidos com seus versos quiromânticos com seus lábios inalcançáveis com suas pálpebras insolúveis com seus dedos intangíveis com suas válvulas que se intumescem


como se ainda em convulsões cada estrela fosse uma abrupta circunferência daquilo que jamais se nomeia

nessa voragem em que relampeja o bico das armaduras durante a invasão de cada pedaço onde o assobio do cristal é quase uma nuvem-esgrima

apesar de que nascemos e morremos sem que nenhum de nós possa guardar consigo a relíquia da difusa claridade que resplandece diante de nossos olhos

apesar de que toda rosa se desvanece e nenhuma luz se revela no meio da balbúrdia quando alguns pássaros crucificados começam a dançar em torno das clareiras

apesar de que nenhuma alma se entrega ao corpo desenganado quando ninguém sonha na expiação do enxofre e nunca eu mesmo fui capaz de compreender minha própria insignificância

apesar de que nem seríamos corajosos a ponto de acariciar aquela cordilheira longínqua e tampouco isso faria a mínima diferença já que um chimpanzé saltaria de um prédio a outro num milésimo de segundo

apesar de que nem todo fogo poderá ser apagado pela velocidade do córrego assim como jamais o medo será extirpado de nossos pensamentos enquanto os músculos se revigoram em diversas gotículas numa espécie de transbordamento incessante

apesar de que algumas linhas esgarçadas se recompõem à margem dos contornos imponderáveis quando são açoitadas numa turbulência sem volta e assim se precipitam em inúmeras verticalidades

apesar de que a sombra por onde se infiltra o acaso jamais continuará sendo a mesma e por isso aquela porta vislumbrada em seu perfil poderá se desmanchar numa figura incognoscível

com rasgos e viscos e larvas e lírios
e fios e fendas e joelhos e cordas

com varetas e tijolos e presilhas e joias
e papéis e cartões e anéis e assoalhos

com chicotes e braços e motores e cadarços
e tesouras e xícaras e réguas e relógios

com sedas e quadros e ímãs e agulhas
e sacos e grampos e trincas e bússolas

com sinos e alumínios e calças e bicicletas
e palitos e livros e escoras e andrajos

com flocos e discos e rastros e espinhos
e hélices e ovários e luvas e gessos

com vasos e gases e ruínas e rosas
e roncos e relinchos e berros e arrepios

com tudo que pode se dispersar em ralos com tudo que pode se dissolver em ondas com tudo que pode se destrincar sob os muros com tudo que pode se desembaraçar atrás de cordões

com tudo que pode se destravar por meio de parafusos com tudo que pode se descolar em trombas com tudo que pode se desembocar em frotas com tudo que pode se despovoar no meio de tropas

com tudo que pode se desmentir em gestos com tudo que pode se desfazer em imagens com tudo que pode se descosturar em escórias com tudo que pode se desmembrar em membranas

com tudo que pode se desarranjar por meio das erosões com tudo que pode se desalojar após as explosões com tudo que pode se desencravar em escarificações com tudo que pode se desossar com a ferrugem

com tudo que pode se dissipar em ceras com tudo que pode se desandar em rodas com tudo que pode se destrancar em ruas com tudo que pode se desenredar em feiúras

com tudo que pode se desamarrar em escadarias com tudo que pode se despencar atrás das portinholas com tudo que pode se desatrelar em troças com tudo que pode se desvelar em vórtices

com tudo que pode se desatar acima das violas com tudo que pode se desdizer com astúcias com tudo que pode se desprender com alicates com tudo que pode se desarticular em restos

com tudo que pode se desalinhar atrás das grades com tudo que pode se deslizar acima das traves com tudo que pode se desaprumar das cadeiras com tudo que pode se desanuviar no centro das tempestades

com tudo que pode se descuidar após a saciedade com tudo que pode se despregar atrás das estantes com tudo que pode se desdourar em demônios com tudo que pode se destroçar com miolos

com tudo que pode se desaguar sobre formigas com tudo que pode se dissecar em parábolas com tudo que pode se desacreditar em fábulas com tudo que pode se desferir em frestas

ENQUANTO UMA GARGANTA SE RETORCE

e a gralha desce da nuvem
e nenhum orvalho atravessa o campo


ENQUANTO UM ADORMECIDO SE ERGUE

e o outono se deita sob as rosas
e nenhum rosto amanhece


ENQUANTO UM CASCO SE DESESPERA

e o ruído enrouquece
e nenhuma sombra se apaga


ENQUANTO UMA LÁSTIMA SE FAZ AUSENTE

e a curva estremece
e nenhum soldado se condensa


ENQUANTO UM VASO SE ENRAIVECE

e o galo acende sua crista
e nenhum estábulo desmorona


ENQUANTO UM OLHO SE APROXIMA

e o vício amadurece
e nenhum escaravelho se silencia


ENQUANTO UMA VOZ SE ESPALHA

e o mundo se contrai
e nenhum artifício aniquila


ENQUANTO UM MURO SE MULTIPLICA

e o rosto se mumifica
e nenhuma teia ilumina


ENQUANTO UM TANQUE SE ENRIJECE

e a mesa se congela
e nenhum sono anoitece

os túneis, as escrivaninhas e as escumadeiras começam a se enlaçar ao redor das axilas tal como se antes nunca houvesse ocorrido aquele entrecruzamento de nódoas esfomeadas

quando um vestido se estilhaça sobre os terraços suspendendo-se contra aquela inversão que acaba de ser expelida através das entranhas

ou como se tudo pudesse retornar à sua nulidade inesperada atravessando o deserto das cloacas ainda que nem toda terra seja restituída à sua forma primordial

como aquele rosto a dissolver-se com as suas minúsculas ventosas para além do centro da sala e nunca mais permanecesse encerrado em sua própria moldura

à semelhança daquela abóbada seviciada que recomeça a trajetória acima dos gestos de um ancião eclodindo em mil fagulhas de aço

enquanto as ventanias ainda resistem no insoldável nódulo das imensas cavidades da casa de alvenaria ao mesmo tempo que os quartzos gemem de ponta a ponta na infame réstia de percevejos onde debaixo do olho da tristeza a porta do saguão se pulveriza

e todos cães emplumados se inclinam contra os degraus enfurecidos tal como se a maçaneta se retorcesse num murmúrio incompreensível de algumas cutiladas sonolentas no instante em que balbuciamos as intermitências de uma língua absolvida

como se um leve relampejar pudesse arrancar-lhe a mão que no fundo dos lajedos se enclausura e nessa efusão de manchas uma minúscula orla esbranquiçada se atirasse contra seu rosto

e assim pouco a pouco o devolvesse ao céu crivado de artérias enquanto um sorriso se derrama no interior da vasilha desconsolada

tal como se um grito escarrado se sonhasse para fora de si quando somos compelidos a esculpir a cada noite por mais breve que seja a vida no estreito cadafalso do vento


(Poemas do livro Metacorporeidade, de Chiu Yi Chih. São Paulo: Córrego, 2015.)

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