terça-feira, 4 de agosto de 2015

SÓSIA DA CÓPIA: O CASO RÉGIS BONVICINO


Régis Bonvicino publicou os seus três primeiros livros de poesia – Bicho papel, Régis hotel e Sósia da cópia (reunidos, posteriormente, no volume Primeiro tempo) – entre a segunda metade da década de 1970 e início da década de 1980. O autor está situado, portanto, na mesma geração literária de Paulo Leminski[1] (com o qual manteve correspondência, publicada no livro Envie meu dicionário, em 1999), Duda Machado, Antonio Risério e Alice Ruiz. O seu projeto literário inicial, assim como o de seus companheiros geracionais, deriva da Poesia Concreta, do Tropicalismo, da Contracultura, mas esse diálogo logo será interrompido, nas décadas seguintes, quando o autor descobre a poesia de vanguarda norte-americana, em especial Robert Creeley, expoente da Black Montain College, Charles Bernstein, Michael Palmer e Douglas Messerli, ligados à Language Poetry, poetas traduzidos e divulgados por Bonvicino no Brasil.

A influência norte-americana na poesia do autor brasileiro será imensa, em seu segundo tempo, sobretudo nos livros Ossos de borboleta (1996), Céu-eclipse (1999) e Remorso do cosmo (2003). A partir dessa produção, inicia um terceiro tempo em sua jornada criativa com os livros Página órfã (2007) e Estado crítico (2013), que retornam a um discurso de sintaxe linear, linguagem coloquial e temática cotidiana, que o autor já praticara no livro Más companhias (1987), mas agora com inflexão política. São, portanto, três momentos bem distintos de sua atividade literária, que inclui também a edição de revistas – Poesia em greve, Muda, Qorpo estranho, Sibila –, a tradução de poetas como Jules Laforgue e Oliverio Girondo, a atividade como crítico nos jornais Folha de S. Paulo e no Jornal da Tarde e a organização de antologias de poesia brasileira contemporânea, como Nothing the sun could not explain (1997) e Lies abouth the truth (2000), publicadas nos Estados Unidos. Neste artigo, vamos abordar alguns aspectos da poesia de Régis Bonvicino, que também atua como juiz de direito em São Paulo.

Bicho papel (1975), seu livro de estréia, cujo título faz trocadilho com bicho papão e, ao mesmo tempo, cria um curioso animal semiótico (assim como o Occam, do Catatau de Leminski), é o livro mais “concretista” de Bonvicino, utilizando o neologismo e a palavra-montagem, a la Lewis Carroll e James Joyce, em poemas como Metaforagir-se (“metaforagir-se em vocúbulos / metonimizar-se em hiatos / anacolutorcer-se em paragarfos”), sinais de pontuação inseridos como ruídos gráficos (“?avolho / ?av?lho / ?av?l?o”) e até mesmo o espaço em branco da página, no poema visual “a 10cm / uma palavra”.

Em Régis hotel, seu segundo livro, publicado em 1978, a emulação da Poesia Concreta permanece, em poemas como oO, que exploram a visualidade por meio da utilização não-gramatical de maiúsculas no texto poético (“oO sSiILÊnNcCioO / gGrRiItTaA pPaArRaA / oO oOlLvViIDoO”), ou ainda Vamos destruir a máquina?, ready-made construído pela reprodução de tiras de uma história em quadrinhos do Professor Pardal, na qual o poeta inseriu outro texto nos balões de diálogo (experiência similar à realizada por Antonio Risério com quadrinhos de Flash Gordon, no livro Fetiche). Nesta obra, além de reproduzir ecos da Poesia Concreta de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, o autor também dialoga, de maneira explícita, com o humor dos haicais de Paulo Leminski, como acontece no poema sem título que diz: “não sejam tolos! / a verdadeira / linguagem cifrada / é a dos homens escada / que sobem na vida / sem dizer nada”.  Sósia da cópia, publicado em 1983, mantém a vertente leminsquiana (“não há saídas / só ruas viadutos avenidas”) e a visualidade concreta (“o céu / não cai / do céu”, “Utopia / you are the top”), bem como o vocabulário haroldiano, em poemas como Fio de esperança, dedicado ao autor de Signancia: quase céu e Galáxias. 

A composição mais interessante do volume é Vida, paixão e praga de RB, dividida em oito seções breves, em que Bonvicino parodia diversos estilos, entre eles o das litanias da lua do poeta uruguaio de língua francesa Jules Laforgue, em versos curtos e ferinos, nos quais faz violento autorretrato satírico: “fio e pavio / do óbvio / epígono sim / ‘inocente’ inútil / dilutor / com todas as letras / caixinha de eco / menino de recados / robô abobado”. Claro: por trás do aparente masoquismo poético estava a constatação, naquele momento histórico, do aparente beco sem saída do concretismo: o que fazer após Tudo está dito, de Augusto de Campos? Más companhias, publicado em 1987, e 33 poemas, que veio à lume em 1990, mantêm a angústia edípica: o primeiro livro não vai além da dicção coloquial leminsquiana (“palavras não matam / nem provocam inverno atômico”, “tentar / não contém / nem contenta”, “o sol de cima / é o dinheiro do sul”) e o segundo mantém a construção concisa, elíptica, neológica e fragmentária assimilada da vanguarda concretista e seu paideuma (a presença de cummings é nítida, sobretudo, em Num zoológico de letras, em linhas como “borbollllleta / raTTo / aa aa aa aa aa belhas”, e ainda nos poemas Borr, Não voz, Poema em homenagem a Laforgue).

Já nos poemas Nada inconexo, Pontas de palavras e Pregão da primavera, o autor cria labirintos poéticos em que as palavras são dispostas em três colunas verticais, permitindo diferentes combinações e caminhos de leitura – recurso adotado, com maior radicalidade inventiva, por Augusto de Campos, em composições visuais como Inseto e Memos, publicadas no livro Viva Vaia (Poesia 1949-1979). Enquanto Bonvicino, em seus labirintos poéticos, mantém a sintaxe discursiva quase intocada, não investe na diversidade tipográfica e dispõe as palavras e linhas numa diagramação amadora, que conduzem a poucas variações de leitura, Campos abole a sintaxe em sequências de verbos e substantivos sem relação gramatical entre si, que podem ser lidas no sentido horizontal, vertical ou em diagonal, utiliza diferentes famílias de letras, para ampliar os graus de ruído e dissonância. A capacidade de geração de múltiplas formas de leitura, pela recombinação aleatória de fonemas, atinge seu grau máximo no poema-livro-objeto Colidouescapo, de Augusto de Campos, formado por diversas folhas soltas que, tiradas de ordem pelo leitor e colocadas em outras sequências, permite a criação de palavras neológicas como desestinto, resiscanto, desenisto, menoscontro, resprezo.

A inabilidade de Bonvicino para trabalhar com a visualidade levou-o a abandonar a Poesia Concreta a partir de Outros poemas, publicado em 1993, que reúne poemas escritos entre 1990 e 1992. Dividido em três partes, este livro, intermediário entre o primeiro e o segundo tempo, é talvez o mais consistente da obra do autor paulistano, pela densidade semântica, inteligência estrutural, humor negro, impressões sensoriais, metáforas agudas, ambientação urbana e outros elementos que definiram o seu estilo. É uma poesia pós-concreta, não no sentido de superação formal da Poesia Concreta, mas de sinalização de uma nova senda criativa, posterior e distinta da vanguarda concretista. Percebemos, nesta poesia da maturidade de Bonvicino, outras leituras e influências, em particular a do argentino Olivério Girondo, autor de En la masmédula, traduzido para o português por seu colega brasileiro com o título de A pupila do zero[2]. No poema Morreu-me, por exemplo (“Morreu-me o visto como palavra”), há um jogo com Hasta morirla, de Girondo (literalmente, “até morrer-la”, invenção neológica a partir da construção normativa “até matá-la”).

Em outra peça, Olhar de dentro, um dos textos mais inventivos do volume, Bonvicino exerce a escrita enigmática, lacônica, em linhas como estas: “Olhar de dentro, / tocar-se de dentro – / só, em si mesmo, / onde em silêncio / adentro”, unificada pelas rimas internas e pela repetição anafórica da palavra dentro. As ações e imagens impossíveis contidas no poema (“tocar-se de dentro”, “cabelos de dentro”, “unhas de dentro”) antecipam uma das figuras recorrentes na evolução criativa do leitor, sobretudo nos livros Ossos de borboleta e Céu eclipse.

O absurdo intencional, distante de qualquer veleidade surrealista, será também um dos pontos de contato entre Bonvicino e Michael Palmer, ambos estimulados pelos “botões tenros” de Gertrude Stein. A escrita enigmática está presente em outras peças notáveis do volume, como Este nunca se dar (“Nunca se dar em negros / só, entre lobo e cão, / branco como parede / nem ao menos um ocre”) e Repetir-se (“repetir-se / em putrefatas que nada / nem um ser oco e aparente (...) / bocejo diante do ereto / um narciso escombro cego”), peças de forte dissonância, ressaltada pela associação incomum dos termos. Em outra peça, de concepção mais simples, intitulada O tempo, Bonvicino escreve: “O tempo foi de encontro / ao galho da quaresmeira / podre, no chão, / depois da chuva”, construção precisa e objetiva, somada, nas estrofes seguintes, a diversas outras experiências sensoriais, formando uma curiosa paisagem de “azuis em tons, / na fachada do edifício”, “grafites coloridos nos muros” e “o vermelho / do automóvel na esquina”.

O retrato de cenas urbanas ou da natureza, com a lente focalizando pequenos detalhes inesperados, está presente em numerosas composições do livro, como Paisagem (“Cupins em pontas, / farpadas de arame / e céu”), Dezenas de louva-a-deus (“Dezenas de louva-a-deus / saem do barro de cupim”), Árvore exala (“em frente um / louco de cócoras / cata / no cruzamento de terra / pedras na rua”), entre outras peças de boa fatura. O segundo tempo da poesia de Régis Bonvicino, influenciado pelo minimalismo de Robert Creeley e pelas pesquisas da Language Poetry norte-americana, compreende os livros Ossos de borboleta (1996), Céu-eclipse (1999) e Remorso do cosmo (2003).

No texto de apresentação ao primeiro livro desta trilogia, Marjorie Perloff salienta a lição aprendida por Bonvicino com seus novos mestres espirituais, sobretudo “a colocação de pequenas palavras – entre, como, alguém –”, considerados tão importantes quanto “os seus parentes mais pretensiosos, os grandes substantivos que se arvoram a designar verdades grandiosas sobre a experiência”. Com efeito, este recurso se tornará lugar-comum na poesia de Bonvicino, e também na de poetas jovens que iniciaram sua jornada criativa no final da década de 1990, como Manoel Ricardo de Lima, Virna Teixeira, Fabiano Calixto, Tarso de Melo, André Dick. Todos eles praticaram o poema conciso, elíptico, escrito em letras minúsculas e com espaço duplo entre as linhas; todos eles abusaram de palavras como algum, alguma, ninguém, nenhum, isso, isto, aquilo e dos verbos no infinitivo. Claro: reduzir toda a poesia de Bonvicino e seus amigos a tais recursos seria injusto, mas não podemos deixar de registrar o abuso desse maneirismo, responsável, muitas vezes, pela criação de poemas ocos.

O próprio autor de Ossos de borboleta vai além da receita de bolo no poema Janeiro, onde lemos: “Flor – vermelha / folhas – cabeças de lagarto / talos / avançam sobre a varanda”, e no final da peça, “sol tenso, de trovões, / um pássaro bica os pistilos / corolas fechadas / estio”, imagens cinematográficas, construídas com recursos de montagem que nos fazem lembrar do princípio do ideograma e também da luxúria visual do barroco. Outra peça que se destaca no volume é Ventilador, poema que dialoga com a obra visual de Regina Silveira: “o ventilador de regina silveira não é formal / parece personagem de uma novela de franz kafka / (...) / o ventilador de regina silveira / não atenua as temperaturas / de quem o queira”.  Esta peça é quase uma arte poética, em que Bonvicino reconhece, na obra singular da artista plástica, pontos de contato com a sua própria escrita, como a deformação da imagem, os jogos entre objeto e sombra e a representação simbólica da angústia e da perplexidade.

O estilo conciso e fragmentário de Ossos de borboleta tem continuidade em Céu-eclipse, que podemos considerar um plus com sobras do livro anterior. Comentando a escrita poética de Bonvicino, Carlito Azevedo afirma, acertadamente: “Sua operação poética mais constante consiste na observação atenta de uma cena até conseguir captar (...) uma estrutura mínima, que seja o núcleo do conjunto (...). Assim é que roupas, janelas, carros ou portas ganham significados novos quando relacionados a coisas como tempo, velocidade, cor e memória”. Um recurso usado com frequência nesta fase do autor paulistano é a criação de animais ou vegetais insólitos, verdadeiros monstros semânticos: “rosa canina”, “gaviões terrestres”, “corvos quadrúpedes”, não raro associados a ações impossíveis, como o “peixe fora da água / redes- / atando / estrelas”.

O último livro da trilogia, Remorso do cosmo, desenvolve e radicaliza todos esses procedimentos, com o acréscimo de um número mais expressivo de poemas em prosa, de peças escritas em inglês e da temática política mais explícita – nacional e internacional –, como acontece em Sem título (4) (Fanti-axanti): “estigma decapitado, agora, ‘alcoólatra, amigo das drogas’ (Fa Lun Gong, calado! e os da Coca-Cola, na Colômbia, atraídos, assassinando)”. Diversas composições utilizam vocabulário e metáforas militares (“Borboletas fogem para os abrigos”, “Tateava um morteiro / & seu alcance”, “Dispara mísseis em sílfides”) – os poemas do livro foram escritos entre 1999 e 2003, logo, coevos às agressões imperialistas dos EUA ao Iraque e ao Afeganistão.

Após dedicar-se, por quase três décadas, a um formalismo estrito, que não é impermeável ao sentido político e social mas enfatiza a pesquisa vocabular e estrutural, Bonvicino muda totalmente sua poética em seus dois títulos mais recentes – Página órfã (2007) e Estado crítico (2013).  A ruptura sintática, a elipse e a fragmentação do discurso cedem vez a poemas narrativos, lineares, coloquiais (“Fedendo a cigarro e a mim mesmo”), que já não causam surpresas. São registros líricos de fatos nacionais ou internacionais, cenas do cotidiano, paisagens, com maior ou menor carga de ironia e sarcasmo. Régis Bonvicino – o Sósia da Cópia – após ser concretista, leminquiano, languager, torna-se, agora, drummondiano. Aguardemos suas próximas metamorfoses.  
 


[1] Leminski nasceu em 1944, Bonvicino em 1955, mas ambos estrearam em livro na década de 1970.

[2] Masmédula é um neologismo criado por Girondo cuja tradução literal seria “Maismedula”.

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