sábado, 15 de agosto de 2015

A BUSCA DE UM DEUS QUE SAIBA DANÇAR





Chiu Yi Chih realiza um trabalho poético que tem como ponto de partida o conceito de imagem poética formulado por Paul Reverdy – a aproximação inusitada de referências que pertencem a realidades diferentes (conceito antecipado por Lautréamont, nos Cantos de Maldoror, que imagina “o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”, formulação que descende das metáforas de agudeza da poética barroca). No livro de estreia de Chiu, Naufrágios, publicado em 2011 pela editora Multifoco, vamos encontrar uma rica variedade de imagens bizarras, tais como: “mãos de lânguidas grutas”, “línguas em forma de ovo”, “mar-avenida-mulher”, “peixe triângulo losango”. A imagem poética, recurso frequente na poesia simbolista e surrealista, busca aproximar os planos do sonho, da imaginação e da realidade cotidiana, estimular a experiência sensorial, pela junção de elementos sonoros, visuais, táteis em imprevistas sinestesias e – não menos importante – fazer da poesia uma jornada de liberdade. A alquimia verbal de Chiu viola, deliberadamente, a ordem rotineira das coisas, criando paradoxos como “O triângulo possui lados incalculáveis”, ações impossíveis como as pedras que “lambem espirais de verde osso”, definições como “cor é quase um feixe de barbatanas sem fios” ou “o mar não é a esfera de Parmênides”, imagens monstruosas de seres híbridos, como “homem de brânquias”, embora o poeta também seja capaz de uma lente quase realista, como no poema Macau: “Os cais de Macau / são / lama podre / faiscando / coágulos: a vida / arrastada entre / osso / e poças / a madrugada que cai / os olhos / da lua / exilados / no peito”. 

O universo mitológico é uma constante em sua poesia, onde encontramos referências greco-romanas – Orfeu, Ulisses, Cronos – ao lado de divindades do candomblé, do budismo, do xamanismo. Claro: não se trata de poesia mística, no sentido doutrinário, mas de uma visão de mundo baseada no retorno à natureza, à experiência sensorial, lúdica, do sagrado – cuja expressão máxima são as danças iniciáticas dos rituais antigos, que Chiu retoma em suas performances: a poesia se corporifica, a palavra ganha expressão de voz, rosto e corpo em movimento (nesse sentido, podemos fazer uma aproximação entre a poesia-corpo de Chiu e as intervenções no palco de Marcelo Ariel, poeta também fascinado pelo hermetismo). Em sua poesia escrita, Chiu enfatiza o movimento na espacialização das linhas na página, como acontece na composição Pólipo, dedicada a Roberto Piva (uma de suas mais fortes referências literárias).

O uso de palavras e frases em caixa alta, o uso do itálico, de palavras ou sílabas isoladas na linha, entre outros recursos – que remontam ao Lance de dados de Mallarmé – atribuem timbre e ritmo às palavras, como se fossem notas de uma partitura musical – além do aspecto plástico do poema, que ganha uma ênfase, uma retórica, própria do ideograma e das primeiras formas de escrita caligráfica. A própria leitura torna-se operação lúdica, como acontece em Rezando com José Agripino de Paula, poema escrito em homenagem ao autor de Panamérica, em que as linhas podem ser lidas na horizontal ou na vertical, ampliando a construção de significados. A formação do autor, mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, sugere possível viés filosofante em seus poemas, que não raro citam Nietzsche, Heráclito, Parmênides, Deleuze – porém, não se trata de logopeia, a “dança do intelecto entre as palavras”, conforme Ezra Pound, nem de mera exibição de citações cultas: Chiu não busca encontrar ou defender uma suposta “verdade”, e sim celebrar a experiência do estar no mundo: o seu deus, como aquele de Assim falava Zaratustra, é um deus que sabe dançar.     

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