domingo, 14 de outubro de 2012

REFLEXÕES BRECHTIANAS (VI)

Notável, nesta reunião de poemas de Brecht, a fusão entre o eu lírico, o eu social e o rigoroso artesanato de linguagem, que se manifesta em versos de alta precisão e objetividade, como na conhecida peça  

Lista de Preferências de Orge

Alegrias, as desmedidas.
Dores, as não curtidas.

Casos, os inconcebíveis;
Conselhos, os inexequíveis.

Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.

Orgasmos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.

Domicílios, os temporários.
Adeuses, os bem sumários.

Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.

Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.

Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.

Cores, o rubro.
Meses, outubro

Elementos, os Fogos
Divindades, o Logos.


Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.

Tradução: Paulo César de Souza

O poema, construído na forma de dísticos rimados, recorda o estilo coloquial-satírico do poeta francês Jules Laforgue (que aliás viveu na Alemanha, onde foi leitor da imperatriz), em especial o da série de litanias da lua, como na peça que apresentamos a seguir:

Litanias dos Quartos
Crescentes da Lua

Lua sublime,
Nos ilumine!

É o medalhão
De Endimião,

Astro de argila
Que tudo exila,

Caixão milenar
De Salambô lunar,

Cais etéreo
Do alto mistério,

Madona e miss,
Diana-Artemis,

Santa vigia
De nossa orgia,

Jetaturá
Do bacará,

Dama tão pálida
Em nossa praça,

Vago perfume
De vaga-lume,

Rosácea calma
Do último salmo,

Olho-de-gata
Que nos resgata,

Seja o auxílio
A nosso delírio!

Seja o edredão
Do Grande Perdão!

Tradução: Claudio Daniel

A intertextualidade é um recurso frequente em Brecht – como vimos em seus diálogos com Villon e Laforgue – e assinalam, mais do que a exibição narcísica da referência erudita, uma tomada de posição, uma filiação poética, junto à estirpe dos poetas malditos, sarcásticos, questionadores das normas vigentes na poesia e na sociedade. O diálogo com Laforgue nos parece bastante natural, sobretudo se recordarmos o comentário feito por Mário Faustino sobre o poeta francês: "Jules Laforgue (1860-87): mais um jovem de gênio (Rimbaud, Corbière...) a explodir na língua francesa para desmoralização de uma rotina ética e estética e para preparar o terreno de um novo mundo (ainda hoje por vir). O processo que deu origem a Laforgue: decadência do mundo capitalista, miséria existencial do homem do fin-de-siècle, falácias e panaceias burguesas (Amor etc.) e a linhagem Heine-Baudelaire-Rimbaud-Corbière" (FAUSTINO, 2004: 184). Curioso observar que nesta breve nota crítica -- mas concentrada e densa, como toda a obra crítica de Faustino -- o autor faz um paralelo entre o francês Laforgue e o alemão Heinrich Heine, seu possível precursor na objetividade, precisão e ironia. Os dois poetas -- assim como Brecht -- limparam a linguagem poética de adornos e ornamentos decadentistas, colocando em primeiro plano os substantivos, as coisas.  Heine é, sem dúvida, um dos precursores de Brecht na língua alemã, inclusive no campo político, se pensarmos em poemas como Os tecelões da Silésia, de 1844, e de seu posicionamento político, de claro perfil socialista, embora sem estar filiado a nenhum dos partidos operários de sua época.

Na poesia política de Brecht, herdeira da lírica inconformista de Heine, predominam quatro temas: o da natureza predatória do capitalismo -- especialmente da especulação financeira --, o elogio da revolução socialista, a denúncia do nazismo e o testemunho dos horrores da II Guerra Mundial. Brecht abandonou a Alemanha logo após ascensão de Hitler, em 1933, e viveu no exílio em diversos países europeus até 1941, partindo depois para os Estados Unidos, onde vive até 1947. Sua produção ao longo dos anos 1930-1940 é fortemente marcada pelos acontecimentos internacionais, assim como ocorreu na obra de Carlos Drummond de Andrade, sobretudo no livro Rosa do Povo, com.o qual também poderíamos traçar um curioso paralelo:

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

(Versos iniciais de O medo, de Carlos Drummond de Andrade)

e:

Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro Reich
Ao ser perguntado quem realmente governava lá, respondeu:
O medo.

(Versos iniciais do poema Os medos do regime)

Tradução: Paulo César de Souza

A poesia de Brecht, como a de Drummond, nesse período, é uma poesia de resistência e combate, em que o eu lírico não se oculta, mas está presente em sua angústia, em suas dúvidas, em sua fragmentação (que é também a fragmentação do mundo), e ainda no júbilo epifânico que traduz a esperança utópica, em flashes como este:


ORGULHO

Quando o soldado americano me contou
Que as alemãs filhas de burgueses
Vendiam-se por tabaco, e as filhas de pequeno-burgueses por chocolate
As esfomeadas trabalhadoras escravas russas, porém, não se vendiam
Senti orgulho. 


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