segunda-feira, 14 de setembro de 2015

CADERNOS BESTIAIS















Amador Ribeiro Neto

Claudio Daniel (São Paulo, 1962) é poeta, tradutor, ensaísta, jornalista e professor. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela USP. Autor dos seguintes livros de poesia: Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras metálicas (2005), Fera bifronte (2009), Letra negra (2010), Cores para cegos (2013).

Cadernos bestiais (São Paulo: Lumme Editor, 2015), recém lançado, é dividido em três seções. A primeira, “Infernais fungos-de-papiro”, é um libelo antimídia e antipolíticas ditatoriais. Tudo é detonado num forte tom satírico. A segunda, “(Intermezzo)”, dá seguimento à poesia detratora da fase anterior. Versa sobre preconceitos e privilégios. A terceira, “Fabulações de outra margem”, é um poema erótico. Dado o contexto do livro, pode ser lido como metáfora de um novo tempo, usufruído em delícias. A semelhança com o bíblico “Cântico dos cânticos” não é gratuita coincidência.

A poesia cifrada e construída sobre imagens nem sempre decodificáveis, que marca certa produção de Claudio Daniel, cede lugar a uma linguagem expressa e direta. Com isto não queremos afirmar que sua poesia fosse neobarroca. Ele é tradutor e organizador de antologias neobarrocas. Que fique claro. Mas sua poesia, ainda que postergando significados numa chuva de significantes, não é neobarroca. Talvez se aproxime mais do nonsense ou mesmo de certos procedimentos surrealistas.

No presente volume o poeta embrenha-se na poesia engajada. Sem descuidar da forma. E, talvez devido à necessidade de refletir sobre temas sociais, empenha-se na elaboração de uma linguagem mais evidente.

Isto pode ser perigoso, sob a pena de escorregar para o panfletário. Mas não acontece. Claudio Daniel, por ser ensaísta, poeta e professor de literatura, domina admirável repertório teórico. O que não lhe autoriza as facilidades das pasmaceiras que desgraçam boa parte da produção poética hoje. Pelo contrário: sua poesia prima por acentuada consciência de linguagem. Com Valéry e Pound, entre outros, sabemos que, em arte, este traço é fundamental.

O poema que abre o volume intercala vozes diferentes, separadas por versos demarcados por parênteses, que se interpenetram. Ler cada fala e a seguir a interação entre elas, como terceira via, é necessário. Além de rico e elucidativo.

A seguir temos a série intitulada “Antimídia”, numerada de I a X. Cito uma parte do poema II: “Tempo carreira / desenterra / escaravelhos ao contrário / onde abismais / esqueletos do nunca / fornicam trevas. / Esta é a cidade esfíngica /onde passos trilhados / ao avesso da membrana. / Esta é a cidade esfíngica / onde a desrazão / navega a insanidade. / Porco burguês. / Porca burguesa. / Chafurdam na mídia pré-histórica, / colecionando cifras. / Onde neste caos aritmético, / há lugar para o infinito?”.

“Cantiga”, poema que fecha o livro, formado por sete partes, diz: “todas as mulheres / são tigres desenhados / em teus olhos, que se desdobram / na noite estrelada: olhos-pés, olhos-mãos, / olhos-boca, olhos-peitos, olhos-nada”, num enlevo que vai do da louvação encantatória ao apagamento absoluto. Em outro momento: “porém, a delícia / de caminharmos lado a lado, / sem destino, nessa terra ignorada, / quando lagartos devoram cicatrizes, / e então mais uma vez, / você é para mim um anjo, e eu a sua sombra”. A construção final retoma a epígrafe de Tristan Tzara: a amada é vista angelicalmente, enquanto o eu-lírico se projeta como nefelibata. Ou seja: o mundo onírico surge enquanto uma das asas da utopia.

Cadernos bestiais investe na expressividade poética. Com a beleza do leve e transparente. 

(Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 28 de agosto de 2015, p. B-7.)

Um comentário:

  1. A poesia é a linguagem em máxima potência. Não espere menos desse poeta.

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