Claudio Daniel
Zunái, Revista de Poesia e Debates (https://www.revistazunai.org/), comemora
vinte anos de guerrilha virtual no ciberespaço. Criada em 2003 por Rodrigo de
Souza Leão, Ana Peluso e por mim, a revista eletrônica publicou alguns dos mais
expressivos nomes da poesia, do teatro, do romance, do ensaio e das artes
visuais brasileiras. Ao longo de duas décadas, estiveram presentes nas
páginas da Zunái autores como Augusto e Haroldo de Campos, Décio
Pignatari, Arnaldo Antunes, Wilson Bueno, Milton Hatoum, Gerald Thomas, Regina
Silveira, Guto Lacaz, Leda Catunda, Alex Flemming, para citarmos poucos nomes,
além de muitos autores jovens. Desde o início, a revista assumiu uma posição de
voluntária parcialidade crítica (seguindo a lição de Baudelaire),
exteriorizando os seus critérios de escolha e interferindo de maneira
desafiadora no cenário cultural brasileiro, sem fazer concessões a estéticas
mumificadas. Zunái assumiu o compromisso de publicar trabalhos de
maior inventividade formal, em campos como o da poesia visual, da poesia
sonora, da poesia digital, do texto poético experimental, sem filiar-se, porém,
a nenhuma tendência literária específica, a nenhum programa normativo redutor:
sua vocação é a de ampliar diferentes graus de ruído e dissonância, para
desafinar a melodia única dos contentes. Esta pluralidade de radicalismos
possíveis se manifestou em nosso interesse pela poesia neobarroca de José
Kozer, Reynaldo Jiménez, Victor Sosa, León Félix Batista, mas também pelo
minimalismo de André Dick e Virna Teixeira e pela escrita inclassificável de Contador
Borges, Abreu Paxe, Antônio Moura e Erin Moure. Nossa representação geométrica é
o círculo, dentro do qual se movimentam infinitas linhas concêntricas,
aproximando-se, distanciando-se, provocando colisões, ruídos e atritos
criativos, em constante ebulição e metamorfose. A Zunái sempre
se recusou a fazer um mapeamento convencional da poesia brasileira – tarefa
sempre incompleta e efêmera das revistas e antologias – mas, ao contrário,
optou por iluminar autores que ficaram à margem do cânone rumoroso promovido
pela mídia, organizado por critérios poucas vezes éticos ou estéticos.
Publicamos autores jovens de violenta novidade formal e temática, que estão
entre as vozes mais consistentes da nova poesia, como Adriana Zapparoli,
Andréia Carvalho, Mar Becker, que trazem propostas de desestruturação da lírica
coloquial-cotidiana do Modernismo (tão incensada por críticos midiáticos que
nada sabem de poesia) e de reorquestração das palavras e frases em outras
combinações possíveis, ampliando o léxico, renovando a sintaxe, dialogando com
repertórios infrequentes, num sopro de renovação e desafio.
Rompendo com o mimetismo colonizado das
poéticas praticadas nos grandes centros econômicos, Zunái estabeleceu
novas parcerias, divulgando poetas de Angola, Moçambique, África do Sul, Síria,
Cuba, México, Peru, República Dominicana, Venezuela, entre outras nações de
poesia. O link Galeria publicou mostras virtuais de alguns dos mais
conceituados artistas visuais brasileiros, como Leda Catunda, Elida Tessler,
Nino Cais e Eduardo Frota, enquanto o link de matérias especiais enfocou temas
culturais mais amplos, envolvendo diferentes linguagens artísticas, como o
teatro de Gerald Thomas, o cinema de Werner Herzog e Peter Greenaway, a prosa
de Wilson Bueno, os 50 anos da Poesia Concreta e o debate sobre a crítica
literária brasileira, em textos como "Muito além da academídia: poesia
brasileira hoje", de Rodrigo Garcia Lopes, e "Pensando a poesia
brasileira em cinco atos", de Claudio Daniel.
Os editores de Zunái nunca
tiveram o propósito de estabelecer ou defender uma suposta “estética única”, o
que pode ser verificado facilmente na própria revista, onde publicamos desde
haicais e poemas sonoros até composições concretistas e surrealistas; a
inovação, para nós, nunca foi rua de mão única ou questão teológica ou
metafísica. O que recusamos no ecletismo nunca foi a diversidade, mas a
concessão sem critérios a estéticas frágeis, que não apresentam nenhuma
novidade temática ou formal. A defesa intransigente da pesquisa estética, do
experimentalismo, da inovação, em nenhum momento foi entendido por nós como
nova torre de marfim, alheia aos acontecimentos no mundo – muito ao contrário. O
design da capa da Zunái, em sua primeira dentição, foi criado
por Ana Peluso e por mim com o propósito de representar o conflito entre
barbárie e cultura: os links, dispostos de maneira circular, incorporaram
imagens de obras de arte da Antiguidade do Museu Nacional de Cabul, destruídas
pelo Talebã sob a acusação de paganismo e idolatria. Na página do Expediente da
revista, inserimos a imagem de uma obra de arte desaparecida do Museu de Bagdá,
saqueado com a cumplicidade das tropas de ocupação norte-americanas.
Zunái sempre
se posicionou contra as guerras de rapina do império estadunidense no Oriente
Médio e criou, no link Opinião, os Cadernos da Palestina, onde
publicamos regularmente textos e fotos de denúncia da ocupação ilegal dos
territórios palestinos pela entidade sionista. Durante o Fórum Social Mundial
Palestina Livre, ocorrido em 2012, em Porto Alegre, Zunái esteve
presente e distribuiu a plaquete Poemas para a Palestina, com peças
escritas por autores como Glauco Mattoso, Marcelo Ariel, Lígia Dabul, Andréia
Carvalho, Nina Rizzi, entre outros poetas brasileiros e portugueses (o texto
original da plaquete, ampliado com a inclusão de novos poemas, foi publicado em
2014, na forma de livro, pela editora Patuá, do bravo Eduardo Lacerda). A
revista também colaborou na organização da exposição fotográfica dedicada aos
30 anos do massacre de Sabra e Chatila, exposta no mesmo ano na Biblioteca
Alceu Amoroso Lima. Zunái sempre acreditou que o engajamento
estético não se opõe ao engajamento político, mas, ao contrário, é a sua
contraparte dialética, como bem sabia André Breton, ao propor unir o “mudar a
vida” de Rimbaud ao “mudar o mundo” de Marx (equação em que está implícita o
“mudar a arte” de Lautréamont).
O aniversário de dez anos da revista, em
março de 2014, foi comemorado com um recital organizado pelo poeta Rubens
Jardim, na Casa das Rosas, que contou com a participação de Frederico Barbosa,
Claudio Willer, Alfredo Fressia, E. M. de Melo e Castro, Abreu Paxe, Nydia
Bonetti, Andréia Carvalho, Edson Cruz, Luiz Ariston, Edson Bueno de Carvalho,
Diogo Cardoso e Fabrício Slaviero. Uma festa de poesia. Em março desse mesmo
ano foi publicada uma antologia impressa de poemas e textos divulgados na Zunái ao
longo de seus dez primeiros anos de existência, com o apoio generoso da Lumme
Editor. Agora que a publicação digital completou vinte anos, ela deixou de
circular, pois nunca recebemos nenhum patrocínio público ou privado, embora
tenhamos participado de diversos editais, como o da Bolsa Petrobrás (privatizada
para favorecer os amigos de Carlito Azevedo) e o do Instituto Itaú Cultural. A revista
é reconhecida em nível internacional, mas, infelizmente, no Brasil sempre
sofreu o boicote da mídia e tudo o que conseguimos fazer foi com os nossos próprios
esforços. Agradecemos a todos aqueles poucos que sempre apoiaram a revista, e
em especial a Ana Peluso e Mariza Lourenço, responsáveis pelo design e
atualização da “primeira dentição” da Zunái, e a Andréia Carvalho,
editora de multimídia do novo site da revista.
Ave, Zunái! Palestina Livre!
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