terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

CÂNONE E ANTICÂNONE (II)




RITO DA FALA AO ESPELHO: UMA LEITURA DE RICARDO CORONA

Curare, de Ricardo Corona (São Paulo: Iluminuras, 2011) é um livro de poemas que faz um interessante diálogo entre o imaginário indígena (em especial da etnia xetá) e a herança das poéticas experimentais, investindo na espacialização do texto para realçar a oralidade, as variações rítmicas e as mudanças de dicção. O trabalho de Ricardo Corona com a dimensão sonora da palavra (e vale a pena recordar que o poeta tem dois ótimos CDs de música e poesia, Ladrão de fogo e Sonorizador) desconsidera as fronteiras entre prosa e poesia e sintetiza canto, narração e intervenção pictórica, utilizando os sinais de pontuação como se fossem inscrições rupestres. A variação tipológica e gráfica dá movimento às sentenças no livro, pensadas como frases sonoras de uma partitura; neste sentido, o autor potencializa o suporte livro, explorando suas possibilidades comunicativas. Curare é – entre outras coisas – uma reflexão sobre o livro, numa época em que as tecnologias eletrônicas colocam esse tema na ordem do dia. Claro: não se trata de reivindicar a morte do livro, mas sim de repensarmos o conceito e a estrutura do objeto, levando em consideração as mudanças na sensibilidade do leitor contemporâneo, operadas pela navegação no ciberespaço. Não lemos hoje do mesmo modo como no século XVIII, sempre da esquerda para direita, numa sequência linear do tipo início-meio-fim (que remete à lógica evolutiva do pensamento ocidental, desde a Bíblia e Aristóteles): o hipertexto abre “janelas”, páginas que se sobrepõem a páginas, e a leitura principal não tem mais um ponto de partida fixo: na tela do computador, todas as direções são possíveis, muda a concepção de espaço, e também a de tempo, que não mais é retilíneo, mas circular). A etnopoesia dialoga com as vanguardas, como bem observou Jerome Rothenberg: o ritual africano ou indígena é uma somatória de linguagens (musical, poética, coreográfica, dramática, sem esquecermos das tatuagens, adereços e vestes cerimoniais) que transcende as divisões estanques da arte ocidental e remete a outras concepções de espaço, tempo e movimento, que derivam de concepções mitopoéticas coletivas: a arte é uma dimensão do sagrado e ato de afirmação da identidade cultural da comunidade.  Poetas como Ricardo Aleixo, Marcelo Sahea e Ricardo Corona realizam jornadas criativas que resgatam formas de expressão “xamânicas”, via performances (e o próprio livro pode ser uma performance), mas com outro sentido – ou sentidos: não partilhamos mitos coletivos, somos órfãos das utopias, não temos deuses a descobrir em sonhos, logo, o poeta não tem mais a função mágica e social que exercia nas comunidades antigas. Ele é o xamã de uma era cética, o questionador, o dissidente luciferino que não indica rotas ou saídas, mas executa sua dança-mandala no centro do caos.  

Curare é um labirinto dividido em doze partes, que prescindem da leitura sequencial. A primeira palavra do primeiro poema da primeira seção do livro, Entxeiwi, significa “bom dia” no idioma xetá, com uma conotação próxima ao carpe diem latino, e era empregada em um rito oral realizado por José Luciano da Sila (ou Nhangoray, “Mão Pelada”) em frente ao espelho, conforme nos explica Ricardo Corona, na introdução do livro. A palavra se relaciona, no campo referencial, a outras dispostas no texto, como constelações, arquipélagos, tempo, estrelas, mundo: a existência observada por Héta, “fogo (que) vem com sua dança desviante”. O tema se desdobra nas peças seguintes, em que osonho, a embriaguez, o reflexo no espelho e a tela do cinema são outros planos ou retalhos de significação: ver o mundo é nomeá-lo, criá-lo pela palavra poética. Este é o ponto de partida de uma difusa narrativa, ou conjunto de narrativas que se entrecruzam: o livro é uma esfinge que não traz respostas ao leitor, apenas sinais para possível decodificação (outro elemento do labirinto, além da pluralidade de rotas: a escrita cifrada, simbólica, que surge no caminho da iniciação, e as armadilhas que representam perigo aos que não decifraram corretamente os sinais). O elemento lúdico é o fio condutor que permeia todo o poema (se pensarmos em Curare como um poema longo, expandido em doze cintilações): o poeta joga com as palavras, ocultando, modificando, ludibriando ou ampliando suas significações, inserindo-as em diferentes estruturas, desafiando o leitor a completar ou desfazer o quebra-cabeças, e remontá-lo assumindo todos os riscos, incluindo o da incomunicabilidade, que é talvez a única chance de comunicabilidade (na resenha de Cinemaginário, livro de estreia de Ricardo Corona, publicado em 1998, escrevi: “O cinema é a construção de uma realidade imaginada, como o sonho, que não é menos real (ou ilusório) do que a existência cotidiana, como na parábola de Chuang Tzu. O cinema é menos um espelho, um eco do real do que uma metáfora, ou conceito do mundo. Olhar uma cena ou paisagem, de certo modo, é inventá-la; é dar nome às coisas, como Adão, numa dialética entre o fora e o dentro, a parte e o todo. O sujeito cria o mundo e é criado por ele. Viver é navegar entre paradoxos, e saber quem olha, quem é visto não é o menor de todos.”).

(Publicado em fevereiro na revista Mallarmargens)


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