segunda-feira, 4 de julho de 2011

UM POEMA DE OCTAVIO PAZ

PASSADO EM CLARO

(Fragmentos)

Ouvidos com a alma,
passos mentais mais que sombras,
sombras do pensamento mais que passos,
pelo caminho de ecos
que a memória inventa e apaga:
sem caminhar caminham
sobre este agora, ponte
estendida entre uma letra e outra.
Como chuvisco sobre brasas
dentro de mim os passos passam
rumo a lugares que se tornam ar.
Nomes: em uma pausa
desaparecem, entre duas palavras.
O sol caminha sobre os escombros
do que digo, o sol arrasa as paragens
confusamente, tênue

amanhecendo nesta página,
o sol abre minha fronte,
mirante para o abismo
dentro de mim.

Alheio-me de mim mesmo,
sigo os titubeios desta frase,
caminho de pedras e de cabras.
Relumbram as palavras na sombra.
E a negra maré das sílabas
cobre o papel e enterra
suas raízes de tinta
no subsolo da linguagem.
De minha fronte saio a um meio-dia
do tamanho do tempo.
O assalto de séculos do baniano
contra a vertical paciência da taipa
é menos longo que esta momentânea
bifurcação do pensamento
entre o pressentido e o sentido.
Nem lá nem aqui: por esse limite

de dúvida, transitado
só por miragens e vislumbres,
onde a linguagem se desdiz,
vou ao encontro de mim mesmo.
A hora é bola de cristal.
Entro em um pátio abandonado:
aparição de um freixo.
Verdes exclamações
do vento entre os ramos.
Do outro lado está o vazio.
Pátio inconcluso, ameaçado
pela escritura e suas incertezas.
Ando entre as imagens de um olho
desmemoriado. Sou uma de suas imagens.
O freixo, sinuosa chama líquida,
é um rumor que se levanta
até tornar-se torre falante.
Jardim já matagal: sua febre inventa bichos
que logo copiam as mitologias.
Tijolos, cal e tempo:
entre ser e não ser os pardos muros.
Infinitesimais prodígios em suas brechas:
o cogumelo duende, vegetal Mitridates,
a lagartixa e suas exalações.
Estou dentro do olho: o poço
onde desde o princípio um menino
está caindo, o poço onde conto
o que tardo a cair desde o princípio,
o poço da conta de meu conto
por onde sobe a água e baixa
minha sombra.

O pátio, o muro, o freixo, o poço
em uma claridade em forma de lagoa
se desvanecem. Cresce em suas margens
uma vegetação de transparências.
Rima feliz de montes e edifícios,
desdobra-se a paisagem no abstrato
espelho da arquitetura.
Apenas desenhada,

tipo de vírgula horizontal

entre o céu e a terra,
uma canoa solitária.
As ondas falam naua.
Um signo voador cruza as alturas.
Talvez seja uma data, conjunção de destinos:
o feixe de canas, prefiguração do braseiro.
O pedernal, a cruz, essas chaves de sangue
alguma vez abriram as portas da morte?
A luz poente se demora,
alça sobre o tapete simétricos incêndios,
torna chama quimérica
este volume alacreado que folheio
(estampas: os vulcões, os cúes e, estendido,
manto de plumas sobre a água,
Tenochtitlán todo empapado em sangue).
Os livros da estante já são brasas
que o sol atiça com suas mãos rubras.
O lápis rebela-se a seguir o ditado.
Na escritura que a nomeia
se eclipsa a lagoa.
Dobro a folha. Cochichos:
espiam-me entre as folhagens
das letras.

Um charco é minha memória.
Lodoso espelho: onde estive?
Sem piedade e sem cólera meus olhos
olham-me nos olhos
a partir das águas turvas desse charco
que convocam agora minhas palavras.
Não vejo com os olhos: as palavras
são meus olhos. Vivemos entre nomes;
o que não tem nome ainda
não existe: Adão de lodo,
não um boneco de barro, uma metáfora.
Ver o mundo é soletrá-lo.
Espelho de palavras: onde estive?
Minhas palavras me olham do charco
de minha memória. Brilham,
entre ramagens de reflexos,
nuvens paradas e borbulhas,
sobre um fundo do ocre ao abrasado,
as sílabas de água.
Ondulação de sombras, revérberos, ecos,
não escritura de signos: de rumores.
Meus olhos têm sede. O charco é senequista:
a água, embora potável, não se bebe: lê-se.
Ao sol do planalto evaporam-se os charcos.
Ficam um pó desleal
e uns quantos vestígios intestados.
Onde estive?

Estou onde estive:
entre os muros indecisos
do mesmo pátio de palavras.
Abd al-Rahman, Pompeu, Xicoténcatl,
batalha no Óxus ou na barda
com Ernesto e Guilherme. A mil folhas,
verde-negra escultura do murmúrio,
jaula do sol e a centelha
breve do colibri: a figueira primordial,
capela vegetal de rituais
polimorfos, diversos e perversos.
Revelações e abominações:
o corpo e suas linguagens
entretecidas, nó de fantasmas
apalpados pelo pensamento
e pelo tato dissipados,
argola do sangue, idéia fixa
em minha fronte cravada.
O desejo é senhor de espectros,
somos trepadeiras de ar
em árvores de vento,
manto de chamas inventado
e devorado pela chama.
A fenda do tronco:
sexo, selo, passagem serpentina
fechada ao sol e a meus olhares,
aberta às formigas.
A fenda foi pórtico
do além do visto e do pensado:
lá dentro são verdes as marés,
o sangue é verde, o fogo verde,
entre as ervas negras ardem estrelas verdes:
é a música verde dos élitros
na antiga noite da figueira;
- lá dentro são olhos as polpas dos dedos,
o tato olha, os olhares apalpam,
os olhos ouvem os aromas;
- lá dentro é fora,
é todas as partes e nenhuma parte,
as coisas são as mesmas e são outras,

encarcerado num icosaedro
há um inseto tecedor de música
e há outro inseto que destece
os silogismos que a aranha tece
suspensa pelos fios da lua;
- lá dentro o espaço
em uma mão aberta e uma fronte
que não pensa idéias mas formas
que respiram, caminham, falam, mudam
e silenciosamente se evaporam;
- lá dentro, país de entretecidos ecos,
despenha-se a luz, lenta cascata,
entre os lábios das brechas:
a luz é água; a água, tempo diáfano
onde os olhos lavam suas imagens;
- lá dentro os cabos do desejo
fingem eternidades de um segundo
que a mental corrente elétrica
acende, apaga, acende,
ressurreições chamejantes
do alfabeto calcinado;
- não há escola lá dentro,
sempre é o mesmo dia, a mesma noite sempre,
não inventaram o tempo ainda,
o sol não envelheceu,
esta neve é idêntica à relva,
sempre e nunca é o mesmo,
nunca choveu e chove sempre,
tudo está sendo e nunca foi,
povo sem nome das sensações,
nomes que buscam corpo,
ímpias transparências,
jaulas de claridade onde se anulam

a identidade entre suas semelhanças,
a diferença em suas contradições.
A figueira, suas falácias e sua sabedoria:
prodígios da terra
- fidedignos, pontuais, redundantes -
e a conversação com os espectros.
Aprendizagens com a figueira:
falar com vivos e com mortos.
Também comigo mesmo.

Tradução: Marcelo Tápia

2 comentários:

  1. Marcílio Couto5.7.11

    Excelente! Saiu em algum livro?

    ResponderExcluir
  2. Anônimo5.7.11

    Caro Marcílio, sim, é um poema maravilhoso. Foi publicado há algum tempo na Zunái. No Brasil, infelizmente, saíram poucos livros de poesia de Octavio Paz. Sugiro a você o Transblanco, com tradução de Haroldo de Campos, e Pedra do Sol, com tradução de Horácio Costa.

    Abraço,

    Claudio Daniel

    ResponderExcluir