sábado, 30 de julho de 2011

CÂNONE E ANTICÂNONE: HERBERTO HELDER (III)


A primeira parte da composição, que inicia com o verso “Uma noite encontrei uma pedra”, simula a narrativa de um caminhante noturno, que descreve aquilo que experimenta ao longo de uma jornada solitária, num “grande silêncio para se habitar só em gestos”. Porém, ao contrário do narrador de O sentimento dum ocidental, de Cesário Verde, este sujeito, que nunca é nomeado, não observa edifícios, chaminés, a via férrea, carpinteiros, mas encontra objetos de contorno e substância imprecisos, submetidos a constantes metamorfoses, como esta pedra encontrada no meio do caminho, ora verde, ora azul: “Uma pedra / sem folhas, um sino / sem pensamento”, que irá percorrer todas as seções do poema, não raro em situações contrárias à lógica natural (“Às mulheres amadas darei as pedras voantes”). A abstração da paisagem é realçada pelo uso arbitrário de adjetivos, fora da qualquer acepção dicionarizada (“flor hipnotizada”, “abstrata violência”, “viola tenazmente taciturna”), e de pronomes indefinidos em construções como “Alguma coisa dessas coisas da imobilidade”, “Alguma coisa subida de raízes mais milagrosas” e “Algo não levantado inteiramente da obscuridade”.

O enigma, o paradoxo, a ambiguidade, são os gênios tutelares dessa escritura, onde, de modo similar ao princípio mallarmeano, não importa pintar a coisa, mas o efeito que ela produz – que será eficiente na medida de sua fluidez, imprecisão e pluralidade de rotas de leitura. Helder é um parente espiritual de Camilo Pessanha, sobretudo do Pessanha mais obscuro do que melódico, como no soneto de Clepsidra que começa com o verso “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas”, cuja atmosfera onírica, com imagens de alto impacto estético (“Fulgurações azuis, vermelhas, de hemoptise”, “Abortos que pendeis as frontes de cidra”), antecipam as insólitas arquiteturas helderianas (bem como as de Mário de Sá-Carneiro, em versos como “Idade acorde de Inter-sonho e Lua, / Onde as horas corriam sempre jade”, do poema Distante Melodia, do livro Indícios de Ouro).

A imprecisão voluntária do enunciado, na primeira parte do poema de Helder, é obtida também pela alteridade, em versos como “Som ou degrau que eu beijaria”, “Ou então era alta, ou esmagada, ou degolada, / no meio de um silêncio global”. A conjunção ou, que oferece ao mesmo tempo alternativa e exclusão, cria uma instabilidade no discurso: pode ser isto, pode ser aquilo, não temos um solo firme, uma delimitação de contornos, mas uma abertura para várias possíveis maneiras de imaginarmos o sentido, num desejado caos sensorial da escrita. A transgressão da lógica rotineira manifesta-se ainda pelo uso contínuo de partículas negativas, que simulam a afirmação de algo por sucessivas recusas de caráter enigmático: “Encontrei uma pedra pedra / que não era uma colina com o mês de março em volta / Nem era a boca materna aberta / debaixo dos rios lisos. (...) / Encontrei algo que não andava / pelos montes nem seria atravessado / por uma flecha. E não sangrava. / Que não se ouvia se cantava”. As estranhas afirmações pela negação, de ritmo anafórico e estrutura próxima à da enumeração caótica, combinam-se ao uso de advérbios para aprofundar ainda mais o grau de incerteza e instabilidade do discurso: “Talvez fosse fria / ou vivesse abrasada sobre a ilusão”, “aldeias inteiras cantando sua pureza quase louca”. A palavra-chave que se repete nesta seção do poema, estruturando o ritmo e corporificando a alucinação, é o verbo encontrar, conjugado na primeira pessoa (“Encontrei em mim essa clareira”, “Encontrei um animal desconhecido”, “Encontrei ondas e ondas contra mim”), que conduz as estrofes, num crescendo, até o final de aparente referencialidade, onde nos deparamos com o amor, a morte, o silêncio (“palavras fundamentais”, logo, esvaziadas de sentido) e enfim este verso ambíguo, quase chave de ouro: “ — Se era uma pedra, um sino. Uma vida verdadeira”, que retoma duas imagens recorrentes no texto, a pedra e o sino, em associação com a palavra vida, num jogo entre concreto e abstrato, pessoal e impessoal, vida e linguagem.

O verso, de sintaxe fragmentada, pode ser lido de várias maneiras, por exemplo, a partir da hipótese de ocultamento da conjunção ou: “ — Se era uma pedra, ou um sino. / Ou uma vida verdadeira”, que numa leitura superficial indicaria uma relação antitética entre existência e representação, natureza e artifício. Sem dúvida, toda construção estética é artificial, seja pelos materiais utilizados em sua consecução, seja pela aplicação de técnicas específicas no processo criativo ou pelo artefato artístico em si, mas o trabalho do poeta ou artista não exclui a participação do universo sensorial, como aliás qualquer trabalho humano. O verso poderia ser lido também pelas lentes do fingidor de Fernando Pessoa: esta “vida verdadeira”, com toda a força retórica trazida pelo adjetivo, seria uma ficção semântica, exatamente por se apresentar como algo tão diverso da construção metafórica, que é o recurso formal dominante em todo o poema; negar a metáfora, fazer uma oposição entre ela e a vida, seria uma negação do próprio texto poético. A ambiguidade do verso de Helder, que não se resume a estas duas interpretações, é justamente a sua riqueza, por não constituir um “final” grandiloquente, no espaço onde o leitor aguarda uma conclusão, uma “mensagem”, que o alivie da dura tarefa do entendimento. Sem apresentar nenhuma verdade universal que nos tranquilize e deixando o poema aberto à múltiplas decodificações, este verso pode nos levar a outra discussão, ainda que breve, sobre os diálogos entre subjetividade e artifício na poética helderiana.

(CONTINUA)

Nenhum comentário:

Postar um comentário