domingo, 24 de maio de 2009

ENCONTROS DE INTERROGAÇÃO (II)

A relação entre arte e realidade não é abandonada, mas retomada pela crítica marxista, que propõe um método de investigação do texto literário, cuja estratégia é relacionar a obra de arte com o mundo, ou determinada concepção de mundo, deixando em segundo plano as qualidades artísticas do texto. O que conta, nesse caso, é verificar como o poema reflete uma idéia de mundo, e não o poema como realidade material, ou seja, construção semântica regida por certas formas e procedimentos que visam um efeito estético. Na expressão literatura e sociedade, o que acontece é que o texto desaparece no contexto.

Ler um estudo sobre José de Alencar escrito por um crítico estruturalista, por sua vez, significa ler outro método de investigação do texto literário, em que a biografia do autor e as circunstâncias históricas e sociais perdem todo o interesse. “Não é a obra literária em si mesma que constitui o objeto da atividade estrutural”, diz Todorov; “o que esta interroga são as propriedades desse discurso particular que é o discurso literário. Qualquer obra só é considerada, então, como a manifestação de uma estrutura abstrata mais geral, de que não é mais que uma das realizações possíveis. Nesse particular, tal ciência se preocupa não mais com a literatura real, mas com a literatura possível, em outras palavras: com essa propriedade abstrata que faz a singularidade do fato literário, a literariedade”.

Não vamos aqui discutir cada tendência da crítica literária, o que seria impossível; nosso objetivo é mostrar que a crítica é também uma forma de mitologia, com as suas próprias hierarquias de seres celestes e infernais. O crítico adota uma estratégia e um método específico de investigação do texto literário, e na sua análise e interpretação de uma obra projeta essa concepção sobre o material analisado. Neste sentido, a crítica não estabelece apenas conceitos sobre o que é literatura, mas ainda sobre o que é a leitura. A crítica é um fato da história literária, mas não ultrapassa a história; conceitos e sistemas consagrados caem em desuso e surgem novas abordagens do texto literário, permitindo uma mobilidade intelectual que dissolve as visões mais rígidas.

O erro mais comum que se comete na crítica literária, especialmente naquela produzida na universidade, é justamente o de considerar o modelo teórico como uma finalidade em si mesma, e não como ferramenta de leitura e interpretação. A valorização excessiva de um modelo pode levar a situações absurdas, como a de um professor que não considera a poesia da tradição oral dos povos indígenas e africanos como relevante, pelo fato de não poder ser enquadrada na teoria de sistema literário de Antonio Candido. Ou seja, em vez de buscar outras ferramentas teóricas mais adequadas ao estudo dessa poesia, ele preferiu não considerar poesia uma produção que não se enquadra em determinado conceito.

O modelo teórico não está acima da poesia, que prescinde de qualquer teoria para se justificar como obra de arte. O que o crítico inteligente faz é buscar o caminho mais adequado para a compreensão de um texto, levando em conta a estratégia criativa do próprio texto. Vale a pena citar aqui um trecho do livro Metalinguagem e outras metas, de Haroldo de Campos, em que o titã concreto afirma: “para que a crítica tenha sentido — para que ela não vire conversa fiada ou desconversa — é preciso que ela esteja comensurada ao objeto a que se refere e lhe funda o ser (pois crítica é linguagem referida, seu ser é um ser de mediação). No exercício rigoroso de sua atividade, a crítica haverá de convocar todos aqueles instrumentos que lhe pareçam úteis, mas não poderá jamais esquecer que a realidade sobre a qual se volta é uma realidade de signos, de linguagem portanto”.

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