terça-feira, 17 de dezembro de 2024

PRIMEIRA CANÇÃO IMPRONUNCIÁVEL

 

Para Horácio Costa

 

Eu morei muito tempo em uma casa estranha

casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

situada  a dois passos

do beco-do-nunca-visto

perto do parque da caveira

onde os relógios são mudos.

Lá, onde os ventos são vidro

e as pedras podem ser palavras

que podem ser estrelas

que podem ser os gritos de um surdo.

No Salão da Afetividade

nesta casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

viveiros de orquídeas, azaleias, damas-da-noite

servem de cenário para o retrato

em que a mulher de pele dourada

exibe os seus três seios.

Em cada mamilo, uma argola de prata.

Em seus tornozelos, correntinhas de prata.

Em seu umbigo, um anel de prata.

Senhora da prata

senhora de mim, senhora do alfenim.

No Salão da Invisibilidade

nesta casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

escrevi poemas para ninguém

escritos com a tinta de pequenas mortes

em páginas oceânicas do asperamente.

Poemas com o aroma do sal marinho

do mar noturno de São Salvador.

No Salão da Imparcialidade

nesta casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

ficaram as minhas coleções

de pensamentos rotos, adágios

provérbios, alumbramentos

sentenças de oradores romanos

 e mestres de sânscrito

que visitei nas horas de agonia

em busca de algo que me aliviasse

da simples dor do existir.

Esta casa estranha em que morei

e que ainda está em mim

casa-coruja, casa-caracol

casa-ouriço-do-mar

situa-se numa cidade sobreposta

a outra cidade

que flutua no escuro

de outra cidade

numa região inabitável

onde talvez encontrareis meu nome

essa abstração em que disfarço

(talvez) a mera inexistência.

 

Poema inédito de Claudio Daniel, 2024

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