Para Horácio Costa
Eu morei muito tempo em
uma casa estranha
casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
situada a dois passos
do beco-do-nunca-visto
perto do parque da
caveira
onde os relógios são
mudos.
Lá, onde os ventos são vidro
e as pedras podem ser
palavras
que podem ser estrelas
que podem ser os gritos
de um surdo.
No Salão da Afetividade
nesta casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
viveiros de orquídeas,
azaleias, damas-da-noite
servem de cenário para o
retrato
em que a mulher de pele
dourada
exibe os seus três seios.
Em cada mamilo, uma argola
de prata.
Em seus tornozelos,
correntinhas de prata.
Em seu umbigo, um anel de
prata.
Senhora da prata
senhora de mim, senhora
do alfenim.
No Salão da
Invisibilidade
nesta casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
escrevi poemas para
ninguém
escritos com a tinta de
pequenas mortes
em páginas oceânicas do
asperamente.
Poemas com o aroma do sal
marinho
do mar noturno de São
Salvador.
No Salão da
Imparcialidade
nesta casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
ficaram as minhas
coleções
de pensamentos rotos,
adágios
provérbios, alumbramentos
sentenças de oradores
romanos
e mestres de sânscrito
que visitei nas horas de
agonia
em busca de algo que me
aliviasse
da simples dor do
existir.
Esta casa estranha em que
morei
e que ainda está em mim
casa-coruja, casa-caracol
casa-ouriço-do-mar
situa-se numa cidade
sobreposta
a outra cidade
que flutua no escuro
de outra cidade
numa região inabitável
onde talvez encontrareis
meu nome
essa abstração em que
disfarço
(talvez) a mera
inexistência.
Poema inédito de Claudio Daniel, 2024
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