Claudio Daniel
A sociedade
brasileira sempre esteve dividida entre a Casa Grande e a Senzala. Vivemos em
um país que impôs a exclusão social, os preconceitos racial, religioso, de
classe, de orientação sexual e de gênero desde o início da colonização
portuguesa, no século XVI, até os dias atuais. Para compreendermos a tragédia
brasileira, portanto, é necessário estudarmos as nossas raízes coloniais, e em
particular a formação da elite brasileira, que nasceu com as capitanias
hereditárias, os engenhos de cana-de-açúcar, a imposição do cristianismo, o trabalho
escravo, a submissão da mulher e a dependência política, econômica e cultural em
relação à metrópole. Nunca nos emancipamos do colonialismo e do imperialismo –
primeiro o português, depois o inglês e o norte-americano; sempre fomos uma
imensa feitoria, fornecedora de matérias-primas e mão-de-obra barata para as
potências capitalistas hegemônicas, além de oferecermos um mercado de dimensões
continentais para as mercadorias e capitais excedentes das nações ricas, sem desenvolvermos
um projeto autônomo de civilização.
A burguesia brasileira
renunciou ao seu papel histórico de promover uma revolução democrática que
criasse um estado laico com verdadeiras instituições republicanas, promovesse
os direitos básicos de cidadania, eliminasse a fome, a miséria, o
analfabetismo, o atraso cultural e permitisse o desenvolvimento em larga escala
das forças produtivas. A elite industrial da Terra de Santa Cruz abdicou de
qualquer vocação democrática ou progressista e preferiu manter a sua aliança
com o latifúndio – rebatizado de “agronegócio” –, o capital financeiro
internacional e a dominação imperialista para a exploração brutal da classe
trabalhadora, em vez de investir na
construção de um país moderno, democrático e soberano. Podemos comprovar essa
afirmação com facilidade, pelo simples exame dos fatos recentes da política
brasileira após o golpe de estado de 2016, como o apoio do empresariado urbano,
e em particular da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), à flexibilização do conceito de
trabalho escravo no campo, implementada pelo governo ilegítimo de Michel Temer
(PMDB). Outros exemplos poderiam ser apresentados em defesa de nossa tese, como
o apoio empresarial à liquidação dos direitos trabalhistas e previdenciários,
ao congelamento dos investimentos públicos em saúde e educação por vinte anos,
aprovado no Congresso Nacional, à privatização de usinas hidroelétricas,
serviços públicos e empresas estatais rentáveis, em benefício de investidores
internacionais, sem falarmos dos leilões dos campos de pré-sal a preço vil e da
venda de ações dos bancos públicos a grupos privados, numa operação de completa
destruição do país, que supera as desgraças anteriores de nossa história
recente, e em particular a ditadura militar implantada em 1964, que perdurou
até 1985, e o período neoliberal seguinte, que atingiu o seu apogeu nos governos
de Fernando I (Collor de Mello) a Fernando II (Henrique Cardoso). A ausência de
um projeto civilizacional autônomo, soberano e de longo prazo por parte da
elite brasileira, que se contenta com o papel de capitão-do-mato do grande
capital internacional, é a raiz de todo o nosso infortúnio. Para compreendermos
a formação histórica e o caráter predatório dessa elite, um livro é
fundamental: Casa grande & senzala,
do grande sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, que comentaremos a seguir neste
artigo.
Publicado pela
primeira vez em 1933, Casa grande &
senzala apresenta um retrato da sociedade aristocrática, patriarcal, branca,
cristã e escravocrata do período colonial brasileiro, entre os séculos XVI e
XIX. Neste
livro notável, Gilberto Freyre faz uma descrição minuciosa da alimentação,
vestuário, higiene, saúde, arquitetura, mobiliário, vida cotidiana,
sexualidade, religiosidade, meio ambiente, comércio e outros aspectos da vida
colonial brasileira, e em especial da miscigenação entre europeus, negros e
índios, um dos temas centrais da obra, em um estilo de grande beleza literária;
o que nos interessa no presente artigo, no entanto, é o estudo realizado pelo
autor sobre a economia colonial e os hábitos e práticas da elite dirigente. Já
no prefácio de sua obra, o autor caracteriza a atividade econômica desenvolvida
no Brasil na época das capitanias hereditárias de “monocultura latifundiária”
que “exigia uma enorme massa de escravos” e que teve como consequências a
concentração da terra “numa grande extensão em volta aos engenhos de cana”,
onde não se praticava a policultura, nem a pecuária. “Na zona agrária
desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – uma
minoria de brancos e brancarões dominando patriarcais, polígamos, do alto das
casas grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas
senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de
taipa e de palha, vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão”.
Freyre critica a monocultura latifundiária,
concentrada nos engenhos de cana-de-açúcar, apontando os seus “males profundos,
que têm comprometido, através de gerações, a robustez e a eficiência da
população brasileira”, comprometendo a sua saúde, além de prejudicarem o solo.
“Entre outros males, o mau suprimento de víveres frescos, obrigando grande
parte da população ao regime de deficiência alimentar caracterizado pelo abuso
do peixe seco e de farinha de mandioca (a que depois se juntou a carne de
charque); ou então ao incompleto perigoso, de gêneros importados em condições
péssimas de transporte, tais como as que precederam a navegação a vapor e o
uso, recentíssimo, de câmaras frigoríficas nos vapores”. Compreenda-se: na
economia de monocultura açucareira voltada para a exportação à metrópole, não
havia espaço para o cultivo de verduras, legumes, árvores frutíferas, nem a
criação de gado doméstico para a alimentação de casa. Frutas e carnes eram
importadas da Europa, em caravelas, e pela ausência de recursos de conservação
artificial e tempo da viagem, os alimentos chegavam aqui muitas vezes
estragados. Do mesmo modo, importava-se quase tudo da metrópole, desde
vestuário, joias, peças de decoração e armas até ferramentas de trabalho. Toda
a atenção de nossos incipientes capitalistas estava concentrada no cultivo e
exportação do açúcar e no lucro imediato oferecido por esse negócio, sem
nenhuma preocupação com a criação de outras atividades econômicas, mesmo para a
sobrevivência imediata. A alimentação inadequada, tanto dos senhores quanto dos
escravos, resultava na “diminuição da estatura, do peso e do perímetro
torácico; deformações esqueléticas; descalcificação dos dentes; insuficiências
tiróidea, hipofisária e gonodial provocadoras de velhice prematura, fertilidade
em geral pobre, apatia, não raro infecundidade”. As empresas coloniais não
estavam preocupadas com a construção de uma nação próspera, de economia
diversificada, mas simplesmente com a exploração intensiva da terra, com o uso
do trabalho escravo, para a obtenção de lucros rápidos nas exportações para a
metrópole – lucros que seriam usados, posteriormente, para a importação de
manufaturas dessa mesma metrópole, num círculo vicioso de dependência.
No centro desse sistema perverso estava a casa grande,
“completada pela senzala”, que representava “todo um sistema econômico, social,
político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a
escravidão); de transporte (o carro de boi, o banguê, a rede, o cavalo); de
religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater famílias,
culto dos mortos etc.); de vida sexual e de família (o patriarcalismo
polígamo); de higiene do corpo e da casa”, escreve Freyre. Senhores absolutos nesse
sistema, os grandes proprietários rurais dispunham a seu bel prazer da vida e
integridade moral e física dos africanos e índios escravizados, de suas
mulheres e filhos, todos tratados como se fossem animais ou coisas, destinados
ao prazer e ao lucro de seus senhores. Dispunham até mesmo dos corpos de
escravos ou familiares mortos, enterrados dentro da casa grande, numa suposta
continuidade das relações de controle e posse, mesmo após a morte física. Conforme
escreve o autor pernambucano: “Conta-se que o Visconde de Suaçuna, na sua casa
grande de Pombal, mandou enterrar no jardim mais de um negro supliciado por
ordem de sua justiça patriarcal. Não é de admirar. Eram senhores, os das casas
grandes, que mandavam matar os próprios filhos. Um desses patriarcas, Pedro
Vieira, já avô, por descobrir que o filho mantinha relações com a mucama de sua
predileção, mandou matá-lo pelo irmão mais velho”. Freyre descreve ainda, em
detalhes, as sevícias sofridas pelos meninos negros, tratados como animais de
estimação, objetos sexuais ou alvos de humilhação e de tortura por parte das
crianças brancas; o estupro das escravas pelos senhores de engenho, e posterior
castigo das negras pelas esposas brancas, que as mandavam torturar das mais
sádicas maneiras, desde a extração de todos os dentes das pobres diabas pelo
capataz até a morte no tronco, sob a tortura ininterrupta do açoite.
O espaço desta coluna, com certeza, é
insuficiente para analisarmos em profundidade todos os temas desenvolvidos por
Freyre em sua obra-prima, mas o que expusemos até aqui acreditamos ser
suficiente para despertamos o interesse do leitor disponível para a leitura
integral desse grande livro. Claro: o autor pernambucano possui limitações: Casa grande & senzala peca pela
ausência de informação sobre o trabalho escravo na lavoura (o autor concentra a
sua atenção nos escravos domésticos que trabalhavam
na Casa Grande), a miscigenação é apresentada de uma forma idealizada, a luta
de classes nunca aparece (a resistência dos quilombos, por exemplo), como se
não existisse, e os conceitos de raça utilizados por Freyre, comuns nas
primeiras décadas do século XX, estão hoje completamente ultrapassados. Apesar
de todas as críticas que podem ser feitas ao livro -- que data de 1933 --, é
impossível resistirmos à sua prosa elegante e saborosa. Casa grande & senzala é um dos livros basilares
para compreendermos a nossa formação nacional, ao lado de outras obras
clássicas, como O povo brasileiro, de
Darcy Ribeiro, Raízes do Brasil, de
Sérgio Buarque de Hollanda, História
econômica do Brasil, de Caio Prado Jr., e Os
sertões, de Euclides da Cunha, que nos ajudam a compreender porque até hoje
fomos incapazes de criarmos uma civilização.
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