segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

CAMINHOS DO RIO VERMELHO




Riscos verdes e vermelhos que nos acompanham
-- Raul Bopp

I

Campo branco – catarata – lençol de linho – miolo de pão – ilhas esbranquiçadas num mar azul: alcateia de nuvens – sol de janeiro – pela janela do avião.

II

(Iansã, senhora-dos-raios-e-dos-ventos, agita o eruexin – zona de turbulência.)

III

Do branco ao verde – caminho de bambus – verdes arcos estirados ao céu –  do verde ao branco da praia – o mar misturado ao sol.

IV

Praia de Itapuã (a) – pedras negras, limo verde, areia sem cor – casal passeia de mãos dadas.

V

Praia de Itapuã (b)  – coqueiros, muro branco do farol, menina corre para o mar, versos de uma canção.

VI

Visita à casa de Vinícius: retrato de Iemanjá, máquina de escrever,  violão, telefone, foto de Mãe Menininha, sereia de barro com os seios nus.

VII

Na primeira pousada em que nos hospedamos – eu, Scheila e Bibi –, em Stella Maris, escrevi este haicai:

Árvore de flores vermelhas
faz sombra
para o gato.

VIII

Esta é a terceira vez que visitamos Salvador. Roteiro amoroso, entre praias e igrejas, moquecas, bobós, acarajés. A cidade, suas cores e cheiros: tudo parece mais vivo e sanguíneo, música da pele que ensina o sol a dançar.  

Ao som do berimbau
meninos jogam
capoeira de verão

IX

Caminhos do Rio Vermelho (a): dia de festa da senhora das águas. Atabaques, batuques, flores brancas e azuis, tatuagens decotadas de negras, muvuca sagrada.

X

Caminhos do Rio Vermelho (b): blocos de foliões saúdam Mamãe Janaína, filhos de Gandhi e filhos de Marx trazem espelhos, fumo, perfumes, foice e martelo, Odoyá, Iemanjá!

XI   
                                                                                                                            
Após a festa da dona das águas, seguimos para o Hotel do Convento, no Pelourinho. Meninas tocam tambores no Carmo. Baianas posam para fotos com turistas, entre quiosques de cocada. Malandros oferecem rezas contra o mau-olhado.  

XII

Na Ladeira do Paço, onde Anselmo Duarte filmou o Pagador de promessas, ponto de encontro de skatistas, grafiteiros, acrobatas e tocadores de tambor, escrevi mais um haicai:

Nos degraus
da escada de pedra
acrobacia de verão

XIII

Feira na Rua da Cabeça. Scheila escolhe flores para o buquê, entre cheiros de alecrim, manjericão, alfazema, hortelã, rosas brancas e frutas frescas. Aqui você encontra de tudo, até o que não deseja comprar.

XIV

Convento do Carmo, no centro do Pelourinho. Casamento barroco, após a festa de Iemanjá. Bibi enfeita o portão da capela com fitinhas azuis e espalha pétalas de rosas pelo chão. Pedro Costa toca Led Zeppelin ao violão, na entrada dos noivos. Scheila toda de branco, vestido branco, brincos brancos de pérola, Claudio de branco e azul, os ladrilhos portugueses, também brancos e azuis. Juiz de paz realiza a cerimônia junto a um pequeno móvel japonês do Período Nanbam. Beijos e cliques.

Escrevi um poema para o casamento, chamado Mapa do Céu:

Lua-de-mim
amor-em-pele-de-oxum
moça-de-olhos-quase-céu

acende a palavra vermelha
no mais fundo de mim
sempre comigo sempre contigo

amor-em-pele-de-oxum
lua-olhos-lua-boca-lua-pele-lua-pés
no mais fundo de mim

anoitece-me enlouquece-me
moça-de-olhos-quase-céu
sempre comigo sempre contigo

Lua de mim

XV

Caminhos do Rio Vermelho (c): Scheila atira as pétalas do buquê de casamento no mar, oferenda a Iemanjá.

Fitas azuis
flores brancas
flutuam no mar


XVI

Durante a viagem, soubemos da tragédia em Minas Gerais. Rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, centenas de mortos e desaparecidos. Meus olhos pensam: tanta beleza, tanta tristeza. A Vale é uma das maiores empresas de mineração do mundo, privatizada por FHC nos anos 90 por uma fração mínima de seu valor de mercado, e pouco se importa com medidas de segurança e proteção ambiental. Revoltado, escrevi os últimos haicais dessa jornada, antes de voltarmos ao ponto de partida:

Criança suja de barro
aperta no peito
filhote de cão.

Olhos, pés, mãos
bocas de lama:
vivos ou mortos?

Chuva de lama:
animais atolados
são mortos a tiros

Moça coberta de lama
nem vemos
o seu rosto

Rio sem peixes
fluem escombros
na água escura

CLAUDIO DANIEL, VERÃO DE 2019

Um comentário:

  1. Queria voltar no tempo e depois avançar para voltar novamente. Amei.

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