Claudio
Daniel
A duração do deserto (2013), de Nina Rizzi, lançado no I
Festival Poesia Nova, realizado no Centro Cultural São Paulo, é o segundo
título da autora paulista que reside em Fortaleza e também publicou Tambores
pra n’zinga (2012). Em ambos volumes, a lírica narrativa de matiz
modernista soma-se a outras referências, como a fotografia, o cinema, a
estética do fragmento e a cultura afrobrasileira (candomblé pra nanã).
Neste segundo livro, o leque é ainda mais plural, incorporando, de maneira
bastante pessoal, ecos do cubofuturismo russo e da paisagem expressionista, em poemas
construídos em diferentes formas e estruturas, da paródia da linguagem do
e-mail à casida – gênero
poético praticado nas literaturas árabe e persa, popularizado no
ocidente por Federico Garcia Lorca. O multiculturalismo, aliás, é um
traço evidente na escrita poética da autora: o acento oriental já aparece em
seu primeiro livro, em poemas como kabuki
(“com a força de um hímem / os pés apertados da gueixa / me recolho / lanço /
bênçãos e espadas”), mesclado às citações africanas, em peças como jongo ojo-bo (“uso o vestido, o colar de
contas, a rosa, encarnados. / e não apareço. é outubro e eu danço pra mim”) e flauta pra n’zinga (“arranco dos meus ovários teus rosários / contas pra meus
afoxés, tambores”). Todas essas referências revelam uma poeta culta, que
dialoga com a tradição literária e temas culturais, porém, sem afetação
acadêmica ou pretensão erudita: a intertextualidade, na poesia de Nina Rizzzi,
é um índice sentimental, uma pista da relação amorosa com o seu repertório de
afinidades eletivas e uma exteriorização de seu imaginário. A voz da autora é
lúdica e quase sempre com um timbre bem-humorado, irreverente, embora seja
capaz também da solenidade da elegia, como no poema Na estrada de Sintra,
dedicado ao jovem poeta Raul Macedo, falecido em desastre de automóvel (“O que
acontece quando morrem os poetas? / Insensíveis, vão, corpo e mente findos.
Ficam essas / Palavras e àquelas mais que lindas, lazarentas”).
A diversidade de temas, estilemas e timbres de A duração do deserto faz pensar – a princípio – na ausência de um foco narrativo, de uma unidade estrutural, mas a impressão se desfaz após uma convivência maior com esses poemas, que podem ser lidos como um diário cujo leitmotiv é o tempo, explícito já no título da obra. A anotação epistolar (além do diário, podemos notar aqui a presença da carta, do bilhete, do e-mail) é mais evidente nos poemas lacônicos, que assumem por vezes a forma de dístico, como nesta composição: “lançar meu corpo ao cimo / e alcançar teu nome, abismo” (poema impossível, dionises variegada), ou ainda nesta peça, que justifica o título da obra: “água e sal são meus olhos, / deserto é te esperar” (te amar, assombro). A brevidade é também marca característica de seu primeiro livro, Tambores pra n’zinga, onde lemos peças admiráveis como bachiana em dois movimentos pra villa-lobos (“já volto, vou me inexistir / no peito, aquela coisa de moer cana”, que apresenta em poucas linhas um jogo entre imagem concreta e experiência subjetiva), barcarola (“é preciso me afogar de você / como se fosse morrer”) e barcarola em dó bemol (“doído é / descalçar as nuvens”), que dialogam com a música erudita e empregam o recurso da prosopopeia, ou atribuição de qualidades humanas a entes inanimados. Impossível não recordar a lírica de Safo, a poeta de Lesbos, especialmente a Safo dos poemas mais condensados, como este: “A lua já se pôs, / as Plêiades também: / meia-noite; foge o tempo, / e estou deitada sozinha” (tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos).
Notáveis, também, os poemas mais longos: Escrita aos ímpares (“Pedra ontem, pedra hoje e nunca”) e Contrapoema ao homem de meu tempo (“o homem do meu tempo em se punir, manso, me estrangula e ri”), que remete ao lirismo de Carlos Drummond de Andrade, ao mesmo tempo individual e cósmico. A poesia de Nina Rizzzi é um vasto palimpsesto onde, camada após camada, lemos os diferentes disfarces assumidos pelo cruel deus do Tempo.
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