segunda-feira, 27 de julho de 2015

“TODO FRAGMENTO SE COMPÕE PAISAGEM”: A POESIA DE ANDRÉ DICK


André Dick publicou em 2002 um livro notável pelo pensamento plástico que orienta as composições, tanto no campo semântico, onde predominam substantivos como sol, janela, coxas, mobília, bulbo, quanto no campo estrutural. Palavras e linhas são organizadas numa arquitetura de rigorosa concisão e secura, que valoriza ao mesmo tempo o espaço em branco da página – herança de Mallarmé, um dos autores de cabeceira deste poeta gaúcho, natural de Novo Hamburgo – e o registro visual do texto como mancha, incisão, grafia, ruído. O título do volume é justamente Grafias, que coloca em primeiro plano, como observou Júlio Castañon Guimarães no texto de apresentação ao livro, “a dimensão plástica da escrita”, a materialidade de sua elaboração formal. O princípio geométrico se manifesta, conforme Castañon, nos “cortes dos versos e das estrofes, os enjambements, o sistema de repetições e paralelismos”, destacando ainda “a organização sintática dos poemas, por meio de elipses e várias situações de rupturas” que “passa a definir um percurso, não-linear e intermitente. Os poemas breves, com versos e estrofes também breves, se constituem como espaços em que se condensam sequências fragmentadas da matéria textual”. 

O minimalismo poético praticado por André Dick em Grafias – visível também no uso exclusivo das letras minúsculas e na quase ausência da pontuação – pode ser comparado ao de outros poetas que estrearam em livro nos primeiros anos do século XXI, como Fabiano Calixto (Fábrica), Tarso de Melo (A lapso) e Virna Teixeira (Visita), todos eles influenciados por autores norte-americanos divulgados no Brasil por Régis Bonvicino, especialmente Robert Creeley, expoente da Black Montain College. Podemos falar, neste caso, de uma tendência literária, em que há procedimentos formais compartilhados por estes poetas, ainda que com diferenças de dicção e de mitologia pessoal. Um recurso recorrente na poesia de André Dick e dos seus companheiros de geração poética é assim descrito por Castañon: “algumas coisas simples (janela, flor, sol) que se associam a alguns afetos (solidão, desalento) por meio de algumas ações (deslocar, guardar)”. Claro: esta não é uma fôrma que molda a totalidade dos poemas escritos por essa geração, mas uma técnica frequente, assim como a predileção pelo espaço duplo entre as linhas e o uso de verbos apenas no infinitivo, tal como preconizado pelos futuristas italianos nas primeiras décadas do século passado. 

Outras características em comum que podemos apontar entre a poesia de André Dick e os seus companheiros de jornada são o uso constante da elipse, a ruptura sintática, o desenvolvimento não-linear da composição, enfim, a fragmentação do discurso, dando lugar ao que Castañon define, de maneira exemplar, como a “sintaxe do descontínuo, do simultâneo, do inacabado”. No caso específico de André Dick, porém, notamos a presença constante da narrativa, embora esfiapada: quase todos os poemas de Grafias contam uma história, por mais que ela seja fraturada e elíptica, como nesta composição: “árvores ao longo / da avenida / ipê amarelo / distante / na rua seguinte / seu corpo relido / antes do sol / sobre aquela / banca de livros / uma vez registra / coxas e braços / no movimento / do dia”, onde a paisagem recortada e a intersecção de planos indicam uma retórica cubista. Em outros poemas, ainda mais sutis, encontramos imagens quase microscópicas: “fendas no pólen / sem espessura”, “poeira que / a janela / junta no vácuo”; “pedras d’água / contra o vidro / coberto de orvalho”; “um aquário / inova o limo / da água, / inventa seu sol / no musgo”, situações inusitadas: “na sacada de um prédio, / alguém rega estátuas”, certo humor: “árvores têm o costume / de esconder sua idade / no bosque, à sombra, / onde pessoas caminham / entre uma e outra, / o sol infiltrado / pessoas são bulbos” e até mesmo sinestesias: “gesto mudo / entre as coxas”, “a distração no azul / entre as horas / do branco”.

Em todos os poemas do livro predominam a delicadeza no delineamento dos objetos, a simplicidade da paisagem, despida de rebuscamentos metafóricos, e uma musicalidade discreta, intimista, que traduz sonoramente os temas da memória, da solidão, do corpo, do cotidiano e da leitura, leitmotivs que percorrem todo o volume. Uma composição excepcional de Grafias é a peça intitulada Num quadro de Edward Hopper, homenagem ao artista visual hiperrealista norte-americano, onde lemos: “a vida destrói / um sol / quase esquecido / numa tela / de hopper: / o posto de gasolina / abandonado, / onde um senhor, / talvez o dono, / em seu ócio, / rega a grama / com sua bomba / de petróleo”, pintura poética bastante precisa em que alguns poucos elementos externos (o sol, o posto de gasolina, a bomba de petróleo) compõem uma alegoria da sensação de isolamento, desencanto, abandono. É possível ler esse texto também como uma arte poética do autor, que retoma, em contexto contemporâneo, o princípio horaciano de identidade entre a poesia e a pintura (ut pictura poiesis), derivado da fórmula de Simônides de Ceos: “a poesia é pintura que fala e a pintura, poesia muda”. No caso da poesia de André Dick, não se trata, é claro, de reencetar a mímesis, em toda a sua complexidade filosófica, que remonta a Aristóteles, mas de incorporar na escrita poética certos procedimentos das artes visuais, como a fragmentação, deformação e superposição de planos da pintura cubista, presentes em diversos poemas do livro, ou ainda a ordenação geométrica precisa das linhas em busca de uma pureza de expressão, como nas telas de Mondrian, pour donner un sens plus pur aux mots de la tribu

Papeis de parede (2004), segundo título publicado de André Dick, indica uma mudança em sua estratégia poética: a metonímia cede lugar à metáfora, a sintaxe é reconstruída e o verso curto sai de cena, em favor da linha longa, próxima à dicção da prosa. A clareza de expressão, a objetividade e a simplicidade, vetores conceituais de seu primeiro livro, são deslocados nesta nova série de peças, em que predominam o jogo enigmático, o paradoxo, certo barroquismo nas construções imagéticas, que exigem uma outra forma de leitura, mais lúdica: é preciso que o leitor seja coautor da informação poética, construindo significados a partir das pistas deixadas pelo poeta. Se no poema dedicado a Hopper, em Grafias, há uma imagem quase fotográfica, à maneira do hiperrealismo, aqui a imagem assume outra forma, bem diversa. No poema Composição do objeto, de explícito sentido metalinguístico, lemos: “ao se aproximar do objeto / o olhar o desconstroi / e passa a fazer parte / (quase um anexo dele) / em sua distância”. 

A recriação do referente externo pelo poeta, que abdica dos traços precisos em favor da mancha e do borrão, orienta a nova galeria poética de André Dick, não menos rigorosa e surpreendente. Na peça, intitulada Manhã, de linhas concisas, o poeta assim constroi uma imagem do cotidiano: “De repente, o azul / agora se oferece / à luz de uma manhã, / deste átimo breve / na falha do que se ganha, / no espaço da palavra / entre lacunas, encurralada, / apenas destoa, se perde”, que utiliza poucas imagens e palavras simples para formar um pequeno enigma verbal, em que os planos objetivo (manhã, ambiente externo) e subjetivo (falha, palavra, o sujeito) cruzam-se de maneira metafórica. Em outro poema, intitulado Paralelas, a definição metaforizante de ideias, objetos ou sensações é ainda mais hermética, como lemos nestas linhas: “(a linha do horizonte / é tanto uma máquina quanto / uma locomotiva temporal / destinada ao nada)”. Precisamos identificar, no corpo do poema, as palavras-chave (mesa, vidraça, vime, sala) para compormos o cenário alegórico, que se relaciona ainda com o caos, silêncio, podre, desacerto, para construirmos possíveis rotas de interpretação.

No poema Memória nublada, que acrescenta um novo tema ao repertório do autor, lemos: “Outro centro de números / Encarnados na pele, / No resto da membrana / Aos poucos sendo investida / Suprime contra a lógica usual / Uma determinada máquina do corpo / (Dentro dos tubos) / Mais tarde, já poderá respirar”, onde o sentido é indicado por algumas palavras-chave (membrana, corpo, tubos, respirar) espalhadas no discurso lacônico e metafórico, próximo à abstração. Uma composição bastante curiosa é a intitulada Sem tato: “Dentes em conserva, aquário sem / peixes, lâmpadas sem / eletricidade, corredor escuro, relógio / sem ponteiros, nuvens / negras, lençóis sem / leveza, armários / esquecidos, gavetas sem / papeis e lápis. / Não toco em nada. / Nada me toca”. O poema todo é construído a partir de uma série de enumerações negativas, com inevitável humor e non sense, que compõem uma cena estática: nenhum movimento acontece aqui, salvo a afirmação negativa do próprio poeta. Em Papeis de parede, a escrita de André Dick torna-se muito mais lúdica, no sentido barroco do termo: é preciso decifrarmos os sinais de seus enigmas, construídos à base de “lacunas, intermediações, interstícios”. 

Calendário (2010), terceiro livro publicado por André Dick, que apresenta na capa a reprodução da tela Victory Boogie-Woogie, de Mondrian, desenvolve os procedimentos adotados nos livros anteriores: os “cortes, rebatimentos, justaposições que atribuem ao poema multiplicações segundo dimensões crescentes, mas também por meio de blocos de sentidos, ocasionados por zooms repentinos após imagens panorâmicas, dando-nos a grata satisfação de instabilidade formal”, como escreve Ricardo Corona no prefácio. O título do volume, Calendário, e a epígrafe de Carlos Drummond de Andrade, “A vida não chega a ser breve”, remetem à percepção do tempo, tema abordado, com muita sutileza, especialmente nas primeiras peças do livro, onde encontramos pequenas joias como o poema Jardim: “Voltando os olhos ao jardim, queria buscar / o rosto da flor de Emily Dickinson / mas antes do fim. / O contorno feito ao jardim / é menos que o apuro – / A primeira curva em elefante – / um tigre, um leão em bulbo / orbital, diurno / conforme a rotação lunar / no antiescuro”. Nesta peça instigante, o tempo aparece como mutação, multiplicidade de formas, labirinto desconhecido, ameaçador, que percorremos em busca de uma de suas faces temporárias, “antes do fim”. 

Tempo é a matéria da memória, um dos temas mais presentes na poesia de André Dick, e também a dimensão do movimento no espaço, seja o deslocamento geográfico, das sensações e pensamentos, seja o deslocamento sonoro e gráfico das palavras na página, como acontece no belo poema que começa com a linha “Ao redor da estrada de chão”. O próprio léxico do poema (estrada, inverno, enseada, fugir) remete à ideia de percurso, em que não faltam referências à Península Árabe, ao Mar Cáspio, às colunas da Grécia e à Faixa de Gaza. É claro: não se trata aqui da viagem linear, com um roteiro definido, mas de uma série de percalços simbólicos, representados, graficamente, tanto pelas palavras quanto pelos intervalos em branco e pelo uso de asteriscos para separar as várias partes do poema, que obedece a uma lógica fragmentária e descontínua. O tempo, nesta composição, não é assunto para reflexão filosófica, ele se exterioriza no próprio corpo do poema, que pode ser lido como um estudo sobre o tempo. 

O tema da viagem como deslocamento geográfico (real ou imaginário) está presente em outra seção do livro, intitulada Cuidados, em que o poeta apresenta um roteiro vai de Praga, Trieste e Odessa até Treblinka e o Gueto de Varsóvia, revisitando a Shoah e o suicídio de Paul Celan no rio Sena. Este é o conjunto de poemas mais intensos do livro, por todas as referências históricas envolvidas, e culmina com uma peça de caráter mais reflexivo, intitulada Mecânica: “Todo lugar de regresso / a outro caminho. / Toda mecânica implícita / em cada movimento. / O ciclo de luzes / que repercute o avesso. / As portas abertas, / sua memória incluída. / Seu tempo e sua perda, / o que coagula devagar / – meu caro Zamiátin – / mas contra o desalento”.  As peças finais do volume, elencadas sob o título Do seu aroma, são talvez as mais subjetivas que o autor escreveu e são antecedidas por uma epígrafe de Roland Barthes, para quem “o outro está inscrito, inscreveu-se no texto, deixou seu rastro, múltiplo”. 

A poesia de André Dick, mesmo quando remete a personagens e situações reais, nunca as nomeia, como é rotineiro na poesia de cunho confessional; ele oculta o que é particular e transforma a matéria recordada em performance poética, em um jogo jogado com o leitor, a quem cabe – como no teatro sonhado por Mallarmé – juntar as peças e compor a sua própria narrativa. Ou ainda, como o próprio diz em seu Segredo: “Parece uma paisagem, / mas não é exatamente uma. / Mas como se risca, se / desenha, se escreve? / Pegadas, um manuscrito – / pedem que haja uma / luz circunscrita / ao momento em que / a mão torna a direção / correta de saída. / Volta-se contra quem recua / diante da possibilidade / de o retorno não existir / mais como o regresso / em que se pondera / o rosto mais claro”.


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