segunda-feira, 9 de março de 2015

INVENTÁRIO DE ABISMOS


















Priscila Merizzio, autora jovem de Curitiba, publicou em 2014, pela editora Patuá, um livro que se destaca na poesia brasileira recente: Minimoabismo, que reúne poemas divulgados inicialmente em blogues e revistas de literatura na internet, como Germina, Mallarmargens e Zunái. A escrita poética de Priscila Merizzio situa-se num campo diverso daquele incensado por uma parcela da crítica literária, que valoriza a dicção coloquial-ingênua e a temática cotidiana, derivadas de uma releitura redutora do Modernismo. A autora curitibana joga os dados mais longe, ampliando o leque de referências temáticas e semânticas: é possível observar, em sua poesia, traços do expressionismo cruel de um Gottfried Benn (“debaixo das unhas / tenho terra de cemitério’), imagens poéticas à maneira de Lautréamont (“Piazzola é triturado por uma máquina irlandesa de chope”), a lógica da metamorfose de Herberto Helder e Roberto Piva, que modifica ou amplia o sentido das palavras (“gárgula gelatinosa”, “anca-amálgama”) e o recorte elíptico das narrativas, construídas pela sobreposição de diferentes camadas textuais, numa estética assimétrica, dissonante, excessiva. O lirismo de Priscila Merizzio é doloroso, melancólico, sem cair, porém, no sentimentalismo: a autora faz o retrato alegórico de sua própria subjetividade sem economia de recursos lúdicos e irônicos, recordando, por vezes, a língua ferina da poeta romena Aglaja Veteranyi: “o pouco de amor ao próximo que me resta / gira enlouquecido num liquidificador”; “sou feita de ossos funerários”; “meu coração: cemitério de elefantes” e ainda “filhos que não tive ou que doei ao circo”. Os personagens de seus poemas podem ser mitológicos (“Perséfone analisa / a cor da urina dos convidados”, “Netuno puxa a tampa do ralo”), históricos (“Rasputin degola o títere com um machado mongol” e “sodomiza a duquesa”), literários (“agora pulsa em meu peito / o espectro de Frankenstein”), extraídos dos contos de fadas (“Branca de Neve em nado sicronizado”), do cinema (Jane Birkin, Hitchcock, Truffaut), das ciências ocultas (Aleister Crowley) ou das artes (Paul Klee, Miles Daves), que funcionam, muitas vezes, como máscaras dramáticas da própria autora. O pastiche e a paródia são recursos frequentes nesta poesia que não faz distinção entre o repertório “culto” – jazz, cinema europeu, pintura de vanguarda – e as ressonâncias do universo poprock and roll, histórias em quadrinhos, filmes de terror. As referências ao universo zoológico são constantes em Minimoabismo (“animais de rua seguem-me como a uma andarilha”), em que encontramos moluscos, lobos, serpentes, porcos, bois, cães, jabutis, sempre nas situações mais inusitadas, em que não faltam humor, ironia e imagens monstruosas, quase surrealistas, como acontece na composição intitulada Emergências: “fêmeas de lagartos da família Teiidae / trepam com os próprios cromossomos”. O retrato crítico da realidade comparece em Minimoabismo, especialmente nos poemas que tratam da cena undergroud de Curitiba (“michês queimam crack nas araucárias”), mas nunca na forma de poemas-crônicas, que mimetizam a linguagem jornalística: Priscila Merizzio cria pequenas alegorias em que os cenários, personagens e objetos exteriores traduzem o seu desencanto com a história, pesadelo do qual James Joyce desejava acordar. Um exemplo dessa lírica cética é o poema Refúgio, em que lemos versos como este: “na abóbada / longe das trincheiras da revolução francesa / homens verdes urinam”. O timbre grotesco, teratológico, está presente inclusive nas peças de temática erótica do volume, como no curioso poema Ondina emascula Heracles, que diz em seu dístico final: “alforria rumo ao centro cirúrgico: Eva arrancando / com os próprios dentes os pomos de Adão”. A poesia corrosiva de Priscila Merizzio é um saudável antídoto à docilidade milkshake da cena contemporânea.

(Artigo de Claudio Daniel publicado na edição de março/2015 da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA.) 

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