quinta-feira, 27 de março de 2014

O NÃO-LUGAR NA POESIA DE NYDIA BONETTI



“Onde a montanha encontra a água / nasce a flor”, diz a peça de abertura do livro Sumi-ê, de Nydia Bonetti (São Paulo: Patuá, 2014), coleção de poemas que dialogam com a pintura tradicional japonesa, que remonta ao século XIV. Assim como outras artes inspiradas pelo zen-budismo – a técnica de arranjos florais (ikebana), a caligrafia (shodo), a cerimônia do chá (cha-no-yu), o tiro com arco (kyudo) –, o sumi-ê valoriza a leveza, o despojamento, a concisão, a espontaneidade, a precisão que cria o movimento. Todos esses elementos são verificáveis nos poemas de Nydia, que conciliam sensibilidade, delicadeza e notável delineamento formal: “há um jardim qualquer / em qualquer / canto / onde uma flor qualquer / brotou / de qualquer / cor / de qualquer forma, flor / e eu a oferto / a quem souber cuidar”, diz uma composição sem título que remete à deliberada imprecisão e ao ocultamento presentes em haicais de mestres japoneses como Shiki: “No meio do mato / a flor branca / seu nome desconhecido” (tradução: Maurício Arruda Mendonça). É inevitável fazermos uma aproximação entre a poesia de Nydia e um princípio essencial da filosofia da arte japonesa, o yugen, palavra geralmente traduzida como “charme sutil”. Os dois ideogramas que compõem essa palavra significam, respectivamente, mistério e obscuridade. Segundo Darci Yasuco Kusano, “yugen possui um significado além das aparências (...). Os fatores primordiais que constituem o yugen são a beleza e a elegância, aliadas à suavidade; o refinamento físico e espiritual (...). São igualmente expressões de yugen a beleza ideal, sublime, com uma aura de mistério”. Um haicai tem yugen se ele consegue abordar um assunto de maneira inusitada, mas com sutileza, sem ostentação ou vulgaridade. Assim, neste belíssimo micropoema de Nydia: “agora vazios – os campos de algodão / depois do vento”, que podemos comparar com um haicai de Nenpuku Sato: “sementes de algodão / agora são de vento / as minhas mãos” (tradução: Maurício Arruda Mendonça). Em ambas composições, o universo laboral está presente, em harmonia com o ritmo das estações e com os estados de espírito despertados pela condição sazonal, tópico imprescindível no terceto tradicional japonês, onde são incluídas palavras que fazem alusão às estações --  “vento de primavera”, “lua de outono” etc. Claro: Nydia não escreveu um livro apenas com haicais, nem pretende fazer um diálogo “exótico”, superficial, com a cultura japonesa: o que nos surpreende é a maneira como ela incorpora elementos desse repertório e os reelabora em sua poética minimalista, com graça e simplicidade.  O olho imagista ocidental, que alimentou a fanopeia de Ezra Pound, está presente aqui: “no imenso jardim povoado de verdes / uma só / flor / que de tão só – vermelha / destoa”, em que os espaços em branco entre as linhas e a composição exclusiva em caixa baixa reforçam a visualidade do texto, assim como a palavra “flor” isolada no meio do poema, denotando solitude. Há na poesia de Nydia – nascida em Piracaia, no interior de São Paulo – uma presença viva das paisagens da infância, que constroem pensamentos, lembranças e sensações, numa espécie de diário imagético: “tronco / retorcido em securas / restam / folhas miúdas / num cacho / único / flores rosas / pendem / e denunciam: -- a vida / resiste”. Em outra composição, a temática existencial se apresenta de forma ainda mais enigmática: “o não lugar – onde habita / a não / vida / e o não sonhar – morada / de tantos”. Extrema economia formal, reforçada pela linguagem substantiva e pela sintaxe fraturada, elíptica, que se adensa nas últimas peças do volume, culminando na necessária quietude: “peço silêncio / há uma flor: -- se abrindo / no jardim”.

7 comentários:

  1. belos poemas, análise bela

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  2. Gosto imensamente. A beleza no simples.

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  3. A beleza no simples. Gosto imensamente.

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  4. Muito boa nota sobre a Nydia Bonetti, poeta do equilíbrio de simples palavras suaves e vivas.

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  5. ...nydia, uma das vozes poéticas femininas mais densas e sutis da geração 00...

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  6. Senti daqui o cheiro das pétalas do livro.

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  7. Senti daqui o cheiro das pétalas do livro!

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