sexta-feira, 16 de agosto de 2013

OLIVERIO GIRONDO, O POETA DO TRÁGICO PARADOXO


Claudio Daniel

Oliverio Girondo (1891-1967) foi um dos principais renovadores da poesia latino-americana do século XX, ao lado do peruano César Vallejo, do chileno Vicente Huidobro e do brasileiro Oswald de Andrade. Sua obra, que une a tradição da lírica espanhola às conquistas da vanguarda, a linguagem do homem comum à erudição do filólogo, o sentimento nacional à consciência cosmopolita, está situada na mesma zona de in­surgência do Modernismo de 1922, e sua leitura é um estímulo à descoberta de novas fronteiras para além da linguagem dita “poética”. No Brasil, no entanto, a obra de Girondo permaneceu inédita ao longo de setenta anos, um déficit que se deve, em parte, ao fato de o eixo São Paulo/Rio de Janeiro estar mais próximo de Paris e Nova York do que de Buenos Aires, Lima e Santiago. Esse isolamento cultural, apartheid entre a língua de Camões e a de Góngora, foi desafiado, no entanto, por alguns de nossos melhores poetas.

Mário de Andrade, em 1927/28, publicou, no Diário Nacional, uma série de artigos sobre literatura argentina, destacando Oliverio Girondo  e o grupo da revista Martín Fierro. Em seus artigos, Mário fez considerações sobre Veinte poemas para ser leídos en el tranvía, de Girondo, e reproduziu o poema Otro nocturno. Em 1943, Oswald de Andrade encontrou-se com seu colega argentino quando este visitava o Brasil, acompanhado por sua mulher, Norah Lange. Em Ponta de lança, Oswald cita Girondo como um dos "mosqueteiros de 22" e pondera: "Outro seria o panorama americano se conhecêssemos melhor as letras que  produzimos". Po­rém, somente a partir dos anos 70, quando Augusto e Haroldo de Campos publica­ram traduções de El puro no, Plexilio e Hay que buscarlo no nº 2 da revista Qorpo estranho que os jovens poetas brasileiros afinados com a vanguarda tomaram co­nhecimento da obra girondiana. Devemos citar também Jorge Schwartz, cujo livro Vanguarda e cosmopolitismo faz uma importante análise da obra do poeta; e Régis Bonvicino, que publicou em 1995 A pupila do zero, com a tradução na íntegra de En la masmédula, de Girondo — obra capital desse autor insólito.


Um poeta a bordo do século XX

Oliverio Girondo nasceu em 17 de agosto de 1891 em Buenos Aires. Seus pais, Juan Girondo e Josefa Uriburu, o levaram à Europa  pela primeira vez em 1900, para visitar a Exposição Universal, e nos anos seguintes o poeta fez parte de seus estudos no Liceu Louis le Grand (França) e no Epsom College (Inglaterra). De volta à terra natal, formou-se em Direito. Na juventude, Girondo leu, sobretudo, poetas franceses — Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud — e o nicaraguense Ruben Darío, que influenciou toda a moderna poesia de língua espanhola. Com um grupo de amigos, Gi­rondo criou, em 1911, a revista literária Comoedia, e quatro anos mais tarde sua peça La Madrasta (escrita em parceria com René Zapata Quesada)  estreou no Teatro Apolo, em Buenos Aires. Os jornais da época noticiavam, então, dois acontecimentos que agitavam a Europa: a eclosão da I Guerra Mundial e a repercussão do Manifesto futurista, de Marinetti, publicado em 1909 no jornal Figaro, que desencadeou, nos anos seguintes, diversos manifestos e tendências de vanguarda. Os poetas e intelectuais argentinos, que se reuniam nos bares e cafés para discutir as novas idéias estéticas, entusiasmados por autores como Blaise Cendrars, Max Jacob, Apollinaire, logo criaram um movimento: o ultraísmo, liderado então por Jorge Luis Borges. Surgiam revistas, como Proa e Martín Fierro, que divulgavam as propostas vanguardistas e revelavam os jovens autores. Sob a influência da "nova sensibilidade" dessa geração, Girondo escreveu Veinte poemas para ser leídos en el tranvía, publicado em 1922, em Argenteuil, França. O humor, a sensualidade e o exotismo das imagens cubistas predominam neste livro de impressões de viagens, que tem ecos de Blaise Cendrars e é contemporâneo de Trilce, de César Vallejo, e de Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade. A abertura do poema Croquis na areia é uma boa amostra da técnica de colagem que Girondo utilizou nesse livro:


A manhã passeia na praia polvilhada de sol.
Braços.
Pernas amputadas.
Corpos que se reintegram.
Cabeças flutuantes de borracha.


É a época em que Eisenstein fazia experiências de montagem cinematográfica a partir do estudo dos ideogramas chineses, das colagens cubistas em pintura, do desenvolvimento de novas técnicas de fotografia e de peças musicais como A história do soldado, de Igor Stravinski. Mais adiante, o poema diz:
  
    Por oitenta centavos, os fotógrafos vendem os os corpos das mulheres que se banham. Há quiosques que  exploram a dramaticidade das ondas que se quebram. Criadas chocas. Sifões irascíveis, com extrato de mar. Rochas com peitos algosos  de marinheiros e corações pintados de esgrimista.

Este poema, como observou Jorge Schwartz em Vanguarda e cosmopolitismo, é um retrato crítico  do kitsch, do cartão-postal, do baedecker de turista, indicando, pela paródia, a banalidade do "belo" das imagens paradisíacas, convertidas em objetos de consumo. O mesmo enfoque se encontra nos romances de invenção de Oswald de Andrade e na poesia "pau-brasil", com os quais há notáveis semelhanças estilís­ticas.


O barroco e o simbolismo em Girondo

 Calcomanías (1925), o segundo livro de Girondo, retrata de modo carnavalizado a Espanha católica e agrária pré-guerra civil e é, segundo Schwartz, uma "declaração de independência" das letras argentinas. Cabe ressaltar, porém, que, apesar das influências francesas e do sarcasmo contra a ex-metrópole, Girondo permaneceu um herdeiro do barroco espanhol e, em particular, de Quevedo. O barroco está presente no exagero metafórico, na mescla de palavras cultas e chulas, na retórica transbordante, nas imagens a la Goya e no tom picaresco. O retrato do quotidiano em Calcomanías mescla realismo e humor, como nessas passagens de Calle de las sierpes: “Cobertos em suas capas, como toureiros, / os padres entram nas barbearias / a embelezar-se em quatrocentos espelhos por vez / e quando saem às ruas já têm uma barba de três dias. (...) A cada duzentos e quarenta e sete homens, / trezentos e doze padres / e duzentos e noventa e três soldados / passa uma mulher”.

Espantapájaros (1932) é uma obra singular da primeira fase de Girondo. O livro é constituído de poemas em prosa, numerados, sem uma sequência narrativa, enfocando basicamente o amor, a morte e o anseio de fuga, de "transmigrar", numa linguagem que só raramente, no caligrama-prefácio, nos jogos paronomásicos, no cultismo polifônico, lembra o Girondo posterior, do experimentalismo construtivo. Espantapájaros reflete também a influência de dois poemas em prosa da literatura maudite francesa: Une saison en enfer, de Rimbaud, e Les chants de Maldoror, de Lautréamont. (Nesta mesma linha, aliás, se insere Temblor de cielo, publicado em 1931 pelo chileno Vicente Huidobro.) Citaremos, como ilustração, um fragmento:

     Que tua família se divirta em deformar teu esqueleto para que os espelhos, ao mirar-te, se suicidem de repugnância; que teu único  entretenimento consista em instalar-te na sala de espera dos dentistas, disfarçado de crocodilo, e que te apaixones tão loucamente por uma caixa de ferro que não possas deixar, nem um só instante, de lamber-lhe a fechadura.

Interlúnio (l937) é o final tranqüilo da primeira fase de Girondo, marcado pelo oti­mismo inicial do século XX, a era das máquinas, das invenções e da utopia socialis­ta. Não era apenas a estética que os vanguardistas pretendiam transformar, mas a sociedade e o próprio homem. Como assinalou Mário Faustino em Poesia-experiência, o sonho da modernidade era unir o "mudar a vida" de Rimbaud ao "mudar o mundo" de Marx e, para isso, eram necessários novos meios de expres­são. Em Girondo, esse otimismo é manifestado sobretudo pela idéia de solidarie­dade, como notou Enrique Molina (Hacia el fuego central, em Obras de Oliverio Gi­rondo). O desejo de identificação com o mundo é uma das características básicas da poesia moderna, antecipado em Leaves of grass, de Whitman, e teve resso­nâncias em poetas tão diversos como Drummond, Neruda e Maiakóvski. O otimismo dos anos 20, porém, foi abalado pelos desvios da Revolução Russa, em especial após a ascen­são de Stalin, pelo surgimento do nazifascismo, pelo crash da Bolsa de Nova York, e entrou em colapso com a II Guerra Mundial.Persuasión de los días (l942) é, por essa razão, uma obra de ruptura e o começo de uma nova fase.


A geometria da composição

Conforme Enrique Molina, "já não são agora os movimentos e os significados do sonho e a imaginação que se impõem, mas um sentimento de náusea. (...) A visão de um mundo degradado pela miséria social e pela miséria de espírito". A poesia de Girondo torna-se mais concisa, com imagens exatas, sonoridades raras e uma preocupação geométrica com a arquitetura do poema. As influências iniciais, do cubismo e do surrealismo, parecem ceder lugar a um construtivismo a la Maliévitch. Nesta obra o poeta conserva o tom coloquial, retórico — e colérico — de sua prosódia, em brados de protesto como Es la baba e Azotadme!, poemas que foram escritos para ser lidos em voz alta, como A plenos pulmões, de Maiakóvski. A visão atormentada do poeta, sua solidão e o sentimento de impotência frente aos fatos do mundo têm como poema-símbolo a composição Areia: “De areia o horizonte. / O destino de areia. / De areia os caminhos. / O cansaço de areia. / De areia as palavras. / O silêncio de areia.”

Persuasión de los días, com toda sua beleza e ousadia, é apenas o prelúdio à re­volução de En la masmédula (1954-56), a obra culminante de Girondo, em que seu experimentalismo radical se aproxima da prosa de James Joyce e da poesia concre­ta dos anos 50 num mesmo grau de radioatividade poética. A estranheza da obra começa pelo título: o que é "masmédula"? Não é fácil saber, em se tratando de um autor que fazia do paradoxo o seu método. Nesse livro desconcertante, agressivo, cheio de energia e plasticidade, Girondo utiliza um arsenal linguístico que o coloca entre os maiores inventores de poesia em língua espanhola. O livro, gravado em LP nos anos 60 por Arturo Cuadrado e Carlos A. Mazzanti, é um dos emblemas do trágico paradoxo da América Latina que, exportadora de matérias-primas e importadora de manufaturados, produz, apesar disso, alta tecnologia poética.

En la masmédula é um labirinto, ou, para citar uma imagem borgeana, uma série infinita de labirintos, em que a linguagem é levada a seus limites, rompendo barrei­ras do próprio idioma e da dicção. Esta obra não pode ser vista apenas como o re­sultado de equações estético-formais; trata-se de um longo monólogo, dividido em fragmentos, cujo centro temático é a viagem — não o deslocamento geográfico-es­pacial, mas a jornada interior rumo às entranhas da melancolia e dos pesadelos de um homem fatigado pelos dissabores da existência. Neste sentido, o paralelo possí­vel é com oEscaravelho de Ouro, de Oswald de Andrade, e com a filosofia de Sartre e Camus.

Girondo passou os últimos anos de sua vida ao lado da mulher, Norah Lange. Após conhecer a Europa, os Estados Unidos e Oriente Médio, passou a viajar com mais freqüência pela América Latina, tendo se encontrado com Pablo Neruda, no Chile, e com Oswald de Andrade, no Brasil. A pintura foi sua grande paixão. Em sua juventude, escreveu um ensaio, Pintura moderna, em que fez o elogio de Cézanne, Picasso, Matisse. Pouco antes de morrer, pintava quadros de inspiração surrealista. O cronópio Oliverio Gi­rondo — aristocrata esnobe, homem bem-humorado, provocador e ferino, morreu em 24 de janeiro de 1967, aos 76 anos, em Buenos Aires.

Um comentário:

  1. Esta postagem caiu do céu!! Esta semana mesmo coloquei o nome do Girondo numa lista pra eu pesquisar!!!
    Vou ver se encontro algum livro dele na Estante Virtual!!!

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