quinta-feira, 14 de junho de 2012

UM POEMA DE MARCELI ANDRESA BECKER

 
 DO MEU CADERNO DE EXPERIMENTAÇÕES, LXXXVII
 
 
1.
luz,


o que se esvai:
ver- 


melha, desce,
molha,


(lava-pés).
ei-lo: este frágil, finíssimo
espelho — 


a noite ateia fogo

nos seus próprios


tornozelos:


sobe, pelo meio de si,
furiosa, 


pela terrível escultura

da sua vulva. 



sim — posso ouvi-la;
posso 


premeditar o avc

das rosas


e a delicada arritmia dos
pássaros,


prestes 


a derramar o

voo,


(céu, seiva — sim,

santa sangre).
2.

o braço: 
-ar-

busto. 


a mulher levanta-o e atira

neste espelho


o inviolável fruto da sua

anorexia. 


(no cardume de vulvas que se abrem e se fecham

como piranhas


por dentro do espelho.) 


come-

se,


o caroço — o osso: 


vê-lo cair,
(nenhuma imagem e
semelhança). 


só um anel emerge,


o estremecimento inaugural

das bocas,


(centrífugas), 


despet-
aladas.
voos,


sim — posso ouvi-los:

porque há noites


em que a mulher desata a dizer

"pássaros"


para além do seu diâmetro. 

o corpo especular,
miraculoso,
(quebra-se):
depois sangra,
pelo meio de si,


pela abertura das bicadas

nos seus pulsos.

3 comentários:

  1. No poema da Marceli, dividido em duas partes, o discurso, fragmentado, descontínuo, é trabalhado de maneira geométrica e apresenta imagens de mutilação, de simbiose monstruosa, de deformação intencional de corpos e objetos. É um poema sobre a sexualidade, mas não apenas isso, aborda também o problema da identidade, como o ser é visto pelo outro, como vê a si mesmo, e a morte como única realidade. Não há uma lógica linear discursiva no poema – ao contrário do que acontece em Herberto Helder, por exemplo – mas uma lógica caleidoscópica, combinatória, mais próxima talvez de Mallarmé e Roubaud. A maneira como os signos apresentam-se, aproximam-se, transformam-se, distanciam-se, obedece a um ritmo não apenas referencial, mas também sonoro e imagético: nisso está a sua unidade. Admirável pelas sinestesias e metáforas como “a noite ateia fogo / nos seus próprios /tornozelos”, “a delicada arritmia dos / pássaros”, a luz vermelha que molha e muitas outras.

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  2. Anônimo14.6.12

    Nós, os habitantes das margens, desprezadores dos poetas encartados, epecializados e grosseiros, porque vemos na poesia a verdadeira liberdade livre, gostamos dos seguintes versos da poeta Marceli Andresa Becker:

    [ ... ]

    premeditar o avc

    das rosas


    e a delicada arritmia dos
    pássaros,


    prestes


    a derramar o

    voo

    [ ... ]

    Luís Costa

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  3. Belíssimo poema. Que imagens brilhantes. A Marceli sempre nos surpreende, é impressionante. *.*

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