quarta-feira, 14 de março de 2012

DONA VIRGO (I)

Ondas do mar de Vigo, verde mar, musgo, mofo, muco; verde malva, jaspe, jade ou junco. Vera viçosa, fremosa, velida, tecido sem vinco; negra ninfa, niña de Mama África, de São Salvador, filha de Oxum, en las calles de vieja España, onde os teus olhos, onde os teus peitos, moça de virgo? Vera olhos verdes, vê-la é vício, não vê-la é vírus, seu cheiro: folha de ipê, folha de figo, só folhas; aloés, baobá, broto de bambu, begônia, branco alecrim, visgo. Penso em tua pele, não prata, aljôfar ou espuma, mas seda azeviche, seda escura, de brancaflor noturna , em tua voz, que sussurra ao coraçon, e em teus olhos, que falam para a alma. Praza-vos já que vos veja no an, hua vez d’un dia! Só ela, a moura moçela, faz o meu sangue ferver: a que partiu sem me ver, sem se dar. Eu me lancei à viagem, sem temer a voragem, cruzei terras e mares, atrás dessa dona de mim, que me fez danado, e nulhas guardas migo non trago, ergas meus olhos que choran ambos. Estou aqui, em Vigo, Vicus Sacorum, nas encostas de Cerro Castelo, na Galícia, há três dias já, e esta cidade é todo lugar, é lugar nenhum, sua estranha beleza: escamas argênteas de peixe ao sol. Sigo e persigo essa molher em vilas, vales, vielas, como a seta persegue a caça, mas, esforço inútil, de todo fútil: ela se evola, de viés, desvanece, dissolvida no ar do ar. Jogo de esconde entre o nada, o nenhures e o coisa alguma, que começa em qualquer parte e termina, talvez, além-alhures, dois passos à esquerda de lugar algum. Ela, a moçelinha, dona de mui ben parecer, apartada de mim, por quê, para quê?, pergunto a São Simeão, em sua ermida. Quand’ eu vejo las ondas e las muyt’ altas ribas, logo mi veen ondas al cor pola velyda: maldito sea l’ mare, que mi faz tanto male! Sou Gil Eanes Brás, o gatuno, garanhão, desgrenhado, deserdado, desconjunto, bebum sem ofício, poeta sem arte. Sigo e persigo Brancaflor, a louçana de doces garcetas, e pergunto a São Simeão: por quê, para quê?, em sua ermida. Molher tão sem amor: sem você, já sandeu, não sou homem: sou lagarto, locusta, lagostim, látego, ladrilho, sou menos que tudo, uma coisa, uma cousa.

(Trecho inicial de meu conto Dona Virgo, publicado no livro Romanceiro de Dona Virgo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. Esgotado.)

4 comentários:

  1. Uma pena a obra estar esgotada!

    Abraço do Pedra do Sertão.

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  2. Quem sabe algum editor não se interessa em lançar a segunda edição, né?

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  3. em ano de Xangô, lembrar Oxum é sustar o molusco pela concha. um abraço, CD, Michel

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  4. ogum-ê

    dizem-me o olhar mourisco
    filha de iansã, adorada de oxum

    dizem-me a pele clara
    amarelos dentes, clararidade

    negro é o café agoureiro:
    afundamos-nos aos mares

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