terça-feira, 31 de março de 2009

VANGUARDA POÉTICA EM PORTUGAL


O movimento da PO-EX surge numa época conturbada pela Guerra Fria, marcada por eventos como Guerra do Vietnã, os movimentos feministas e estudantis, a luta contra a discriminação racial, a expansão da contracultura e da música pop, a divulgação de filosofias orientais e por acontecimentos tecnológicos como as viagens espaciais. Portugal vivia então numa das últimas ditaduras de direita da Europa, comandada por Antônio Salazar (o outro regime autoritário era o de Francisco Franco, na Espanha), que sonhava em manter o domínio colonial em países como Angola e Moçambique e preservar um sistema nacionalista, messiânico e militarista, há muito anacrônico no continente europeu.

Conforme diz Ana Hatherly, no livro Um calculador de improbabilidades, os poetas e intelectuais portugueses sentiram “uma premente necessidade de mudança e de abertura ao mundo”, mas também “uma necessidade íntima de rigor, de transparência e de audácia incomuns nesse tempo” (HATHERLY, 2005: 8-9). A PO-EX, prossegue a autora, “reflete essa conjuntura e ilustra-a à sua maneira, ao assumir uma postura de insubordinação estética e cívica”, característica de todas as tendências de vanguarda do século XX, mas é um fenômeno “peculiar na medida em que foi simultaneamente uma revolta contra o status quo local e a integração numa recusa dos valores de um establishment internacional, que se tornara intolerável para os jovens de então” (idem).

O sentimento de desconforto em relação ao regime salazarista e o desejo de manifestar o repúdio na forma de uma arte inovadora foram essenciais à definição dos vetores estéticos e ideológicos da PO-EX, que tem como marcos fundadores os lançamentos das revistas Poesia Experimental, em 1964, e Operação, em 1967, além de happenings como o Concerto e Audição Pictórica (1965), a exposição coletiva VisoPoemas (1965) e a Conferência Objeto (1967), que reuniram poetas, músicos e artistas visuais.

O caráter provocativo e performático desses eventos é herdeiro do espírito de transgressão das vanguardas históricas, presente na leitura do “extenso poema sonoro” Zang Tumb Tuuum por Marinetti, que “explora a capacidade do perfomer para usar a voz, gesto e entonação”, conforme diz Marjorie Perloff em O momento futurista (PERLOFF, 1993: 119), ou ainda nas intervenções de Maiakovski nos cabarés de Moscou, em que o poeta se apresentava com as faces pintadas ou com a célebre gravata amarela, conforme relata Angelo Maria Ripellino em Maiakovski e o teatro de vanguarda (1971).

No Concerto e Audição Pictórica, realizado em Lisboa, em 1965, com a participação de poetas como Salette Tavares, Melo e Castro e de músicos como Jorge Peixinho, foram tocadas composições de John Cage, com a colaboração adicional de “um caixão, um piano de meia cauda, instrumentos de percussão vários, balões, metrônomos, uma harpa, um piano de criança, palavras soltas, chocalhos de várias espécies, com e sem badalo, uma flauta de bisel, uma couve, um bidê, risos, pandeiretas, música de Chopin, um ré-ré, um despertador, um rolo de papel higiênico, um jarro de água, um brinquedo de corda, 2 violinos de criança (brinquedos), uma máquina de barbear elétrica, um cravo (flor), uma casa de cão que ladra (brinquedo), pratos, guizos, um apito, espaço tempo, ritmo, luz, silêncio, uma pistola (brinquedo)” (HATHERLY, 1981: 46).

Já na Conferência Objeto, realizada na Galeria Quadrante, durante o lançamento das revistas Operação 1 e 2, foi preparado um ambiente para o público que recorda a técnica da instalação, com as folhas de cartolina que compunham o primeiro número da revista “dispostas na parede como numa exposição de pintura normal, suspensas de fios de nylon, mas sem moldura” (idem, 77), enquanto no chão da sala foram colocadas várias capas da OP.-1, “formando cubos em dois cantos da sala” (idem).

(...)

A resistência estética era, em si mesma, um ato político, pois indicava outras possibilidades de comunicação e, portanto, de relacionamento entre indivíduo, sociedade, arte e história. A ruptura proposta pelos experimentalistas portugueses, porém, não significou uma recusa de toda a tradição literária, à maneira dos futuristas italianos, que opunham o automóvel à Vitória de Samotrácia e defendiam a destruição de museus e bibliotecas. Os experimentalistas recusavam a dicção lírico-discursiva, o sentimentalismo, a retórica, mas propunham o diálogo com o que houve de mais inventivo no passado.

“Nós falamos sempre em ruptura”, diz Melo e Castro, “mas essa ruptura diz respeito a um convencionalismo que nos era imposto, nunca ruptura com uma tradição que era preciso reconstruir” (idem, 20-21). Como exemplo da reconstrução ou reinvenção do passado, diz o autor, “fomos, por exemplo, desenterrar a Poesia Barroca Portuguesa, fomos recuperar, fazer uma revisão crítica das fontes culturais que eram sistematicamente, por uma razão ou (...) sistematicamente ocultadas” (idem). E Ana Hatherly declara que “essa ruptura é uma recusa do ambiente que nos rodeia, e nunca é uma ruptura com as nossas raízes. (...) Pois, porque na verdade muitos dos meus trabalhos têm base numa espécie de quase reelaboração de maneiras de trabalhar antigas” (idem, 21). A eleição de um repertório inventivo com o qual se poderia dialogar, o repertório barroco, maneirista e dos alfabetos arcaicos, é o que distingue, essencialmente, a PO-EX das vanguardas históricas, que pretendiam criar algo totalmente novo, sem raízes em nenhuma tradição. O diálogo com o barroco, e com a forma do labirinto poético em especial, foi decisivo para a evolução do trabalho poético de Ana Hatherly.

(Fragmento de meu ensaio Vanguarda poética em Portugal. Leiam o texto integral no site Cronópios.)

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