segunda-feira, 2 de março de 2009

PENSANDO EM ANA HATHERLY (I)



















Tisanas são um conjunto de composições poéticas breves que Ana Hatherly escreve desde 1969, constituído até agora de 463 fragmentos numerados, que a autora chama de poemas em prosa. Foram publicadas seis edições desse livro, entre 1969 e 2006, e a cada nova edição foram incluídos novos textos, que oscilam entre o aforismo, a parábola, a narrativa ficcional, o koan, o verbete de dicionário ou enciclopédia, o diário e a fábula, dispostos de modo aparentemente caótico, descontínuo, sem uma ordem seqüencial linear. Este é um work in progress que desafia a própria classificação dos gêneros literários, bem como a distinção tradicional entre prosa e poesia, em favor da noção de texto. O caráter híbrido ou miscigenado dessa série de escrituras foi notado por Pedro Sena-Lino, para quem estes “textos inclassificáveis” não se enquadram em “nenhum subgênero literário”, mas, ao contrário, incorporam “vários subgêneros, do poema em prosa ao microconto, até as fábulas” (LINO, 2006). O leitor dessa obra, diz ele, fica desorientado por sua “variedade de registros, subgêneros e temas, sem saber com que aspecto do real, da ficção, do maravilhoso ou da desconstrução (ou de nenhum destes) lida em cada texto” (idem). Essa ruptura de fronteiras entre os gêneros é sintomática do tempo em que vivemos, regido pelo sincretismo da pós-modernidade, que desconsidera limites entre tempos e territórios culturais.

Em sua pesquisa das formas da narração poética, Ana Hatherly incorpora nas Tisanas elementos das mais diversas espécies de texto, inclusive dos bestiários medievais (nas Tisanas 6 a 14, por exemplo, os personagens são insetos, galos, peixes, porcos e serpentes) e das prosopopéias (como na Tisana 15, que narra a saga de duas ervilhas, a Tisana 17, cuja protagonista é uma chave, ou as Tisanas 16 e 18, em que a própria palavra é personagem). A autora faz incursões na teratologia, criando seres singulares como o papa-sombras (Tisana 63), o homem-triângulo (Tisana 73), o mono-asa (Tisana 83), o homem elástico (Tisana 219), inventa nações fantásticas, seguindo o gênero de Jonathan Swift, como a ilha dos náufragos (Tisana 93), a ilha onde se perdia o tempo (Tisana 94), a ilha de vidro (Tisana 98), a ilha de manteiga (Tisana 191) e o país dos coveiros (Tisana 212); em outros fragmentos, parodia verbetes de enciclopédia (“A sabedoria do amor consiste na aprendizagem pelo sofrimento, do prazer nele contido”, diz a Tisana 30; “A civilização consiste em aprendermos a fazer naturalmente tudo o que não é natural”, lemos na Tisana 28), o discurso erudito (como nas Tisanas 370 a 373 e a 377, onde são citados Schopenhauer, Kafka, Benjamin e Lou-Andréas Salomé), a epistolografia (Tisana 2, escrita em francês) ou o livro de memórias, com descrições de sonhos, viagens e visitas a amigos.

Em outros fragmentos do livro, descreve invenções inúteis ou fantasiosas como a máquina chamada “o suicida” (Tisana 54), em que uma bolinha percorre um aparelho engenhoso até cair num buraco e produzir o som TILT; o jogo de xadrez sem pedras, que deve ser jogado no escuro para a “descoberta tateante” das peças ausentes (Tisana 71); e ainda a escada mole, por onde “ninguém conseguia descer a não ser caindo” e a escada elástica, “que não só não cansava nada como devolvia os que subiam instantaneamente ao nível da partida” (Tisana 82). A autora recria elementos da natureza, que são transformados em objetos e seres inverossímeis como a “lagosta cúbica” citada na Tisana 225, o “ninho de gelo” referido na Tisana 227 ou o “letramoto” (terremoto de letras) da Tisana 268; imagina ações irrealizáveis, relacionando-as de modo irônico com a noção de verdade, que orienta a nossa concepção do real: “querer tocar com a mão as alturas; secar o mar; defender a verdade; acreditar no crer” (Tisana 290).


(Trecho do ensaio A escrita em metamorfose: uma leitura das Tisanas, que publiquei na revista Via Atlântica n. 11, do Centro de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo.)

Um comentário:

  1. Anônimo3.3.09

    Fui apresentada a Ana Hatherly, através de Tisanas, há menos de um mês. Quando abri o livro, um mundo novo apareceu – tanto pela forma de sua escrita quanto pelas temáticas.
    Apaixonada, maravilhada, estou lendo agora Anacrusa (68 sonhos da autora, com comentários e textos paralelos), outra obra maravilinda.
    Mesmo sendo leiga, confesso: pela primeira vez lamentei – e muito! – não ter conhecido antes, muitíssimo antes, um autor.
    Talvez porque como você mesmo descreve:
    “... são um conjunto de composições poéticas breves (...) dispostas de modo aparentemente caótico, descontínuo, sem uma ordem seqüencial linear (...)”.
    Isto faz lembrar de mim mesma. Loucura ou não, sou outra depois de Tisanas, ou melhor, de Ana Hatherly. Espero ansiosa a seqüência de “Pensando em Ana Hatherly I”.

    Abraço,

    reginabhen

    ResponderExcluir