“O jogo não é compreendido pela antítese entre sabedoria e loucura, ou pelas que opõem a verdade e a falsidade, ou o bem e o mal. Embora seja uma atividade material, não desempenha uma função moral, sendo impossível aplicar-lhe as noções de vício e virtude” (HUIZINGA, 2007, 9). Por estar além das dicotomias habituais da ética e da metafísica e assumir “acentuados elementos de beleza”, o jogo está próximo da estética. Estas formulações de Huizinga guardam um forte paralelo com o texto inicial do romance O Mestre, de Ana Hatherly: “A Mentira é recriação de uma Verdade. O mentiroso cria e recria. Ou recreia. A fronteira entre estas duas palavras é tênue e delicada. Mas as fronteiras entre as palavras são todas tênues e delicadas. Entre a recriação e o recreio assenta todo o jogo” (HATHERLY, 2006a: 21).
Nesta passagem programática, além de relativizar as noções de verdadeiro e falso — tema aliás abordado na Tisana 298 —, a autora brinca com as diferentes acepções da palavra jogo, entre elas a de “recreio” (que no dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda aparece como “brinquedo”, “passatempo” e “divertimento”), num tom irônico e ardiloso que aponta para outras definições de jogo, como “escárnio, ludíbrio” e “manha, astúcia, ardil” (HOLLANDA, 1986: 990). A palavra “recrio” também é estratégica, pois indica o engenho inventivo da autora, que se propôs a escrever um romance que em nada se parece com a tradição clássica do gênero, situado fora das dimensões narrativas tradicionais e com peripécias que se resumem a breves diálogos e poucas ações.
O jogo entre recriação e recreio tramado nesta obra “rompe com as fronteiras estabelecidas entre a narrativa e a poesia”, como diz Nadiá Paulo Ferreira (HATHERLY, 2006a: 14), inserindo-se, portanto, na mesma zona híbrida e miscigenada de Anacrusa e das Tisanas: não se trata de prosa poética ou romance em versos, mas sim de texto inventivo, experimental, que despreza os limites entre os gêneros. Conforme observou Maria Alzira Seixo na segunda edição portuguesa de O Mestre, há nessa obra “um grande afastamento em relação à definição das estruturas romanescas consideradas normais (tempo, personagens, espaço, intriga)” (HATHERLY, 1976: 10), o que diferencia este livro da “tradição do romance oitocentista que se prolonga (...) pelas primeiras décadas do século XX afora, tanto na Presença quanto no Neo-Realismo” (HATHERLY, 2006a), como escreveu José Carlos Barcello na contracapa da edição brasileira.
“Ana Hatherly não escreveu este livro como se Virgínia Woolf e James Joyce nunca tivessem existido. Escreveu a partir do seu legado, sem deixar de se associar à efervescência experimental dos anos 60”, segundo Silvina Rodriges Lopes, em seu prefácio à terceira edição portuguesa do romance (HATHERLY: 1995, 8). Ao contrário das narrativas ficcionais de cunho linear, em O Mestre “as personagens não têm nome próprio. As palavras que têm como função substituir o nome próprio apontam para o lugar que as personagens ocupam em uma história de amor”, diz Nadiá Paulo Ferreira (HATHERLY, 2006a, 13). Em vez de nomes, o romance traz epítetos para os personagens: assim, temos “uma Discípula que procura obstinadamente um Mestre para amar e ser amada, o que lhe permitiria (...) ‘atingir a Alegria’ ” (idem, 14), e um Mestre “cuja principal característica é o riso” (idem, 15). “Mestre e discípulo são conceitos fundamentais envolvidos no processo pedagógico que visa a transmissão e renovação de conhecimento”, escreve Silvina Rodrigues Lopes (HATHERLY, 1995, 11).
“Os Mestres vêm do Oriente”, prossegue a autora, “confundindo-se com os enigmas das suas falas; são, como Sócrates, exemplares e irônicos (...). Por um movimento de abstractização, o Mestre torna-se todos os mestres” (idem), assim como “a Discípula, que é todos os discípulos” (idem). Ela “representa a capacidade de pergunta e de questionação, a perseguição de uma finalidade que aqui se chama amor ou ciência”, conforme Maria Alzira Seixo (HATHERLY, 1976: 14). Temos aqui tipos dramáticos, portanto, como no teatro vicentino: o Mestre, com um perfil de monge zen ou sábio taoísta, que prefere o riso, o silêncio ou sentenças enigmáticas a um ensinamento direto da verdade (assim como nos koans budistas, parodiados nas Tisanas); e uma Discípula ávida pelo saber, que para ela é o mesmo que o amor e a alegria (numa palavra: a plenitude).
Este livro desconcertante, narrado ora na terceira pessoa, ora na primeira (como as Tisanas), é, paradoxalmente, um ensaio sobre o amor, ou ainda sobre a impossibilidade do amor, um dos temas básicos de Ana Hatherly, sintetizado na Tisana 285: “O verdadeiro amor é um ato indisponível” (HATHERLY, 2006b: 113). Conforme Nadiá Paulo Ferreira, “O Mestre se insere de forma bastante original na tradição do mito de amor das literaturas em língua portuguesa” (HATHERLY, 2006a, 13), embora sem os “artifícios românticos que velam o amor impossível” (idem). A originalidade da autora, diz Nadiá Paulo Ferreira, está na “conjugação entre amor e saber, sendo que este último se torna condição para a descoberta do amor e sua verdade” (idem, 14). O vínculo pedagógico e de sedução entre Mestre e Discípula é justamente o eixo narrativo do livro, cuja estrutura é similar à de um jogo.
(Trechos do ensaio A poética do jogo no romance O mestre, de Ana Hatherly, que publiquei no n. 39 da Revista do Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal de Minas Gerais.)
Nesta passagem programática, além de relativizar as noções de verdadeiro e falso — tema aliás abordado na Tisana 298 —, a autora brinca com as diferentes acepções da palavra jogo, entre elas a de “recreio” (que no dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda aparece como “brinquedo”, “passatempo” e “divertimento”), num tom irônico e ardiloso que aponta para outras definições de jogo, como “escárnio, ludíbrio” e “manha, astúcia, ardil” (HOLLANDA, 1986: 990). A palavra “recrio” também é estratégica, pois indica o engenho inventivo da autora, que se propôs a escrever um romance que em nada se parece com a tradição clássica do gênero, situado fora das dimensões narrativas tradicionais e com peripécias que se resumem a breves diálogos e poucas ações.
O jogo entre recriação e recreio tramado nesta obra “rompe com as fronteiras estabelecidas entre a narrativa e a poesia”, como diz Nadiá Paulo Ferreira (HATHERLY, 2006a: 14), inserindo-se, portanto, na mesma zona híbrida e miscigenada de Anacrusa e das Tisanas: não se trata de prosa poética ou romance em versos, mas sim de texto inventivo, experimental, que despreza os limites entre os gêneros. Conforme observou Maria Alzira Seixo na segunda edição portuguesa de O Mestre, há nessa obra “um grande afastamento em relação à definição das estruturas romanescas consideradas normais (tempo, personagens, espaço, intriga)” (HATHERLY, 1976: 10), o que diferencia este livro da “tradição do romance oitocentista que se prolonga (...) pelas primeiras décadas do século XX afora, tanto na Presença quanto no Neo-Realismo” (HATHERLY, 2006a), como escreveu José Carlos Barcello na contracapa da edição brasileira.
“Ana Hatherly não escreveu este livro como se Virgínia Woolf e James Joyce nunca tivessem existido. Escreveu a partir do seu legado, sem deixar de se associar à efervescência experimental dos anos 60”, segundo Silvina Rodriges Lopes, em seu prefácio à terceira edição portuguesa do romance (HATHERLY: 1995, 8). Ao contrário das narrativas ficcionais de cunho linear, em O Mestre “as personagens não têm nome próprio. As palavras que têm como função substituir o nome próprio apontam para o lugar que as personagens ocupam em uma história de amor”, diz Nadiá Paulo Ferreira (HATHERLY, 2006a, 13). Em vez de nomes, o romance traz epítetos para os personagens: assim, temos “uma Discípula que procura obstinadamente um Mestre para amar e ser amada, o que lhe permitiria (...) ‘atingir a Alegria’ ” (idem, 14), e um Mestre “cuja principal característica é o riso” (idem, 15). “Mestre e discípulo são conceitos fundamentais envolvidos no processo pedagógico que visa a transmissão e renovação de conhecimento”, escreve Silvina Rodrigues Lopes (HATHERLY, 1995, 11).
“Os Mestres vêm do Oriente”, prossegue a autora, “confundindo-se com os enigmas das suas falas; são, como Sócrates, exemplares e irônicos (...). Por um movimento de abstractização, o Mestre torna-se todos os mestres” (idem), assim como “a Discípula, que é todos os discípulos” (idem). Ela “representa a capacidade de pergunta e de questionação, a perseguição de uma finalidade que aqui se chama amor ou ciência”, conforme Maria Alzira Seixo (HATHERLY, 1976: 14). Temos aqui tipos dramáticos, portanto, como no teatro vicentino: o Mestre, com um perfil de monge zen ou sábio taoísta, que prefere o riso, o silêncio ou sentenças enigmáticas a um ensinamento direto da verdade (assim como nos koans budistas, parodiados nas Tisanas); e uma Discípula ávida pelo saber, que para ela é o mesmo que o amor e a alegria (numa palavra: a plenitude).
Este livro desconcertante, narrado ora na terceira pessoa, ora na primeira (como as Tisanas), é, paradoxalmente, um ensaio sobre o amor, ou ainda sobre a impossibilidade do amor, um dos temas básicos de Ana Hatherly, sintetizado na Tisana 285: “O verdadeiro amor é um ato indisponível” (HATHERLY, 2006b: 113). Conforme Nadiá Paulo Ferreira, “O Mestre se insere de forma bastante original na tradição do mito de amor das literaturas em língua portuguesa” (HATHERLY, 2006a, 13), embora sem os “artifícios românticos que velam o amor impossível” (idem). A originalidade da autora, diz Nadiá Paulo Ferreira, está na “conjugação entre amor e saber, sendo que este último se torna condição para a descoberta do amor e sua verdade” (idem, 14). O vínculo pedagógico e de sedução entre Mestre e Discípula é justamente o eixo narrativo do livro, cuja estrutura é similar à de um jogo.
(Trechos do ensaio A poética do jogo no romance O mestre, de Ana Hatherly, que publiquei no n. 39 da Revista do Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal de Minas Gerais.)
Caro Claudio
ResponderExcluirfiquei encantada com essas informações sobre Ana Hatherly, entretando não encontrei disponíveis os livros Anacrusa e 463 tisianas. Você sabe como posso encontrá-los?
um abraço
Adriana Peliano
Alice, Anacrusa saiu em Portugal pela editora Cosmorama, há poucos meses, e 463 Tisanas saiu em 2006, também em Portugal, por uma editora que agora não me recordo... você pode comprar esses livros pela internet, no site Amazon, ou pela Estante Virtual, pelos sites das editoras, ou talvez encomendando pela Livraria Cultura... abraço,
ResponderExcluirCD