André Dick publicou em 2002 um
livro notável pelo pensamento plástico que orienta as composições, tanto no
campo semântico, onde predominam substantivos como sol, janela, coxas, mobília, bulbo, quanto no campo estrutural.
Palavras e linhas são organizadas numa arquitetura de rigorosa concisão e
secura, que valoriza ao mesmo tempo o espaço em branco da página – herança de
Mallarmé, um dos autores de cabeceira deste poeta gaúcho, natural de Novo
Hamburgo – e o registro visual do texto como mancha, incisão, grafia, ruído. O
título do volume é justamente Grafias,
que coloca em primeiro plano, como observou Júlio Castañon Guimarães no texto
de apresentação ao livro, “a dimensão plástica da escrita”, a materialidade de
sua elaboração formal. O princípio geométrico se manifesta, conforme Castañon,
nos “cortes dos versos e das estrofes, os enjambements,
o sistema de repetições e paralelismos”, destacando ainda “a organização
sintática dos poemas, por meio de elipses e várias situações de rupturas” que
“passa a definir um percurso, não-linear e intermitente. Os poemas breves, com
versos e estrofes também breves, se constituem como espaços em que se condensam
sequências fragmentadas da matéria textual”.
O minimalismo poético praticado
por André Dick em Grafias – visível
também no uso exclusivo das letras minúsculas e na quase ausência da pontuação
– pode ser comparado ao de outros poetas que estrearam em livro nos primeiros
anos do século XXI, como Fabiano Calixto (Fábrica),
Tarso de Melo (A lapso) e Virna
Teixeira (Visita), todos eles
influenciados por autores norte-americanos divulgados no Brasil por Régis
Bonvicino, especialmente Robert Creeley, expoente da Black Montain College. Podemos falar, neste caso, de uma tendência
literária, em que há procedimentos formais compartilhados por estes poetas,
ainda que com diferenças de dicção e de mitologia pessoal. Um recurso
recorrente na poesia de André Dick e dos seus companheiros de geração poética é
assim descrito por Castañon: “algumas coisas simples (janela, flor, sol) que se
associam a alguns afetos (solidão, desalento) por meio de algumas ações
(deslocar, guardar)”. Claro: esta não é uma fôrma que molda a totalidade dos
poemas escritos por essa geração, mas uma técnica frequente, assim como a
predileção pelo espaço duplo entre as linhas e o uso de verbos apenas no
infinitivo, tal como preconizado pelos futuristas italianos nas primeiras décadas
do século passado.
Outras características em comum que podemos apontar entre a
poesia de André Dick e os seus companheiros de jornada são o uso constante da
elipse, a ruptura sintática, o desenvolvimento não-linear da composição, enfim,
a fragmentação do discurso, dando lugar ao que Castañon define, de maneira
exemplar, como a “sintaxe do descontínuo, do simultâneo, do inacabado”. No caso
específico de André Dick, porém, notamos a presença constante da narrativa,
embora esfiapada: quase todos os poemas de Grafias
contam uma história, por mais que ela seja fraturada e elíptica, como nesta
composição: “árvores ao longo / da avenida / ipê amarelo / distante / na rua
seguinte / seu corpo relido / antes do sol / sobre aquela / banca de livros /
uma vez registra / coxas e braços / no movimento / do dia”, onde a paisagem
recortada e a intersecção de planos indicam uma retórica cubista. Em outros poemas, ainda mais sutis, encontramos imagens
quase microscópicas: “fendas no pólen / sem espessura”, “poeira que / a
janela / junta no vácuo”; “pedras d’água / contra o vidro / coberto de
orvalho”; “um aquário / inova o limo / da água, / inventa seu sol / no musgo”,
situações inusitadas: “na sacada de um prédio, / alguém rega estátuas”, certo
humor: “árvores têm o costume / de esconder sua idade / no bosque, à sombra, /
onde pessoas caminham / entre uma e outra, / o sol infiltrado / pessoas são
bulbos” e até mesmo sinestesias: “gesto mudo / entre as coxas”, “a distração no
azul / entre as horas / do branco”.
Em todos os poemas do livro predominam a
delicadeza no delineamento dos objetos, a simplicidade da paisagem, despida de
rebuscamentos metafóricos, e uma musicalidade discreta, intimista, que traduz
sonoramente os temas da memória, da solidão, do corpo, do cotidiano e da
leitura, leitmotivs que percorrem
todo o volume. Uma composição excepcional de Grafias é a peça intitulada Num
quadro de Edward Hopper, homenagem ao artista visual hiperrealista
norte-americano, onde lemos: “a vida destrói / um sol
/ quase esquecido / numa tela / de hopper: / o posto de gasolina / abandonado,
/ onde um senhor, / talvez o dono, / em seu ócio, / rega a grama / com sua
bomba / de petróleo”, pintura poética bastante precisa em que alguns poucos
elementos externos (o sol, o posto de gasolina, a bomba de petróleo) compõem
uma alegoria da sensação de isolamento, desencanto, abandono. É possível ler
esse texto também como uma arte poética do autor, que retoma, em contexto
contemporâneo, o princípio horaciano de identidade entre a poesia e a pintura (ut pictura poiesis), derivado da fórmula
de Simônides de Ceos: “a poesia é pintura que fala e a pintura, poesia muda”.
No caso da poesia de André Dick, não se trata, é claro, de reencetar a mímesis, em toda a sua complexidade
filosófica, que remonta a Aristóteles, mas de incorporar na escrita poética
certos procedimentos das artes visuais, como a fragmentação, deformação e
superposição de planos da pintura cubista, presentes em diversos poemas do
livro, ou ainda a ordenação geométrica precisa das linhas em busca de uma
pureza de expressão, como nas telas de Mondrian, pour donner un sens plus pur aux mots de la tribu.
Papeis de parede (2004), segundo título publicado de André Dick, indica uma
mudança em sua estratégia poética: a metonímia cede lugar à metáfora, a sintaxe
é reconstruída e o verso curto sai de cena, em favor da linha longa, próxima à
dicção da prosa. A clareza de expressão, a objetividade e a simplicidade,
vetores conceituais de seu primeiro livro, são deslocados nesta nova série de
peças, em que predominam o jogo enigmático, o paradoxo, certo barroquismo nas
construções imagéticas, que exigem uma outra forma de leitura, mais lúdica: é
preciso que o leitor seja coautor da informação poética, construindo
significados a partir das pistas deixadas pelo poeta. Se no poema dedicado a
Hopper, em Grafias, há uma imagem
quase fotográfica, à maneira do hiperrealismo, aqui a imagem assume outra
forma, bem diversa. No poema Composição
do objeto, de explícito sentido metalinguístico, lemos: “ao se aproximar do
objeto / o olhar o desconstroi / e passa a fazer parte / (quase um anexo dele)
/ em sua distância”.
A recriação do referente externo pelo poeta, que abdica
dos traços precisos em favor da mancha e do borrão, orienta a nova galeria
poética de André Dick, não menos rigorosa e surpreendente. Na peça, intitulada Manhã, de linhas concisas, o poeta assim
constroi uma imagem do cotidiano: “De repente, o azul / agora se oferece / à
luz de uma manhã, / deste átimo breve / na falha do que se ganha, / no espaço
da palavra / entre lacunas, encurralada, / apenas destoa, se perde”, que
utiliza poucas imagens e palavras simples para formar um pequeno enigma verbal,
em que os planos objetivo (manhã, ambiente externo) e subjetivo (falha,
palavra, o sujeito) cruzam-se de maneira metafórica. Em outro poema, intitulado
Paralelas, a definição metaforizante
de ideias, objetos ou sensações é ainda mais hermética, como lemos nestas
linhas: “(a linha do horizonte / é tanto uma máquina quanto / uma locomotiva
temporal / destinada ao nada)”. Precisamos identificar, no corpo do poema, as
palavras-chave (mesa, vidraça, vime, sala)
para compormos o cenário alegórico, que se relaciona ainda com o caos, silêncio, podre, desacerto, para
construirmos possíveis rotas de interpretação.
No poema Memória nublada, que acrescenta um novo tema ao repertório do
autor, lemos: “Outro centro de números / Encarnados na pele, / No resto da
membrana / Aos poucos sendo investida / Suprime contra a lógica usual / Uma
determinada máquina do corpo / (Dentro dos tubos) / Mais tarde, já poderá
respirar”, onde o sentido é indicado por algumas palavras-chave (membrana, corpo, tubos, respirar)
espalhadas no discurso lacônico e metafórico, próximo à abstração. Uma
composição bastante curiosa é a intitulada Sem
tato: “Dentes em conserva, aquário sem / peixes, lâmpadas sem /
eletricidade, corredor escuro, relógio / sem ponteiros, nuvens / negras,
lençóis sem / leveza, armários / esquecidos, gavetas sem / papeis e lápis. /
Não toco em nada. / Nada me toca”. O poema todo é construído a partir de uma
série de enumerações negativas, com inevitável humor e non sense, que compõem uma cena estática: nenhum movimento
acontece aqui, salvo a afirmação negativa do próprio poeta. Em Papeis de parede, a escrita de André
Dick torna-se muito mais lúdica, no sentido barroco do termo: é preciso
decifrarmos os sinais de seus enigmas, construídos à base de “lacunas,
intermediações, interstícios”.
Calendário
(2010), terceiro livro publicado por André Dick, que apresenta na capa a reprodução
da tela Victory Boogie-Woogie, de Mondrian, desenvolve os procedimentos
adotados nos livros anteriores: os “cortes, rebatimentos, justaposições que
atribuem ao poema multiplicações segundo dimensões crescentes, mas também por
meio de blocos de sentidos, ocasionados por zooms
repentinos após imagens panorâmicas, dando-nos a grata satisfação de
instabilidade formal”, como escreve Ricardo Corona no prefácio. O título do
volume, Calendário, e a epígrafe de
Carlos Drummond de Andrade, “A vida não chega a ser breve”, remetem à percepção
do tempo, tema abordado, com muita sutileza, especialmente nas primeiras peças
do livro, onde encontramos pequenas joias como o poema Jardim: “Voltando os olhos ao jardim, queria buscar / o rosto da
flor de Emily Dickinson / mas antes do fim. / O contorno feito ao jardim / é
menos que o apuro – / A primeira curva em elefante – / um tigre, um leão em
bulbo / orbital, diurno / conforme a rotação lunar / no antiescuro”. Nesta peça
instigante, o tempo aparece como mutação, multiplicidade de formas, labirinto
desconhecido, ameaçador, que percorremos em busca de uma de suas faces temporárias, “antes do fim”.
Tempo é a matéria da
memória, um dos temas mais presentes na poesia de André Dick, e também a
dimensão do movimento no espaço, seja o deslocamento geográfico, das sensações
e pensamentos, seja o deslocamento sonoro e gráfico das palavras na página,
como acontece no belo poema que começa com a linha “Ao redor da estrada de
chão”. O próprio léxico do poema (estrada,
inverno, enseada, fugir) remete à ideia de percurso, em que não faltam
referências à Península Árabe, ao Mar Cáspio, às colunas da Grécia e à Faixa de
Gaza. É claro: não se trata aqui da viagem linear, com um roteiro definido, mas
de uma série de percalços simbólicos, representados, graficamente, tanto pelas
palavras quanto pelos intervalos em branco e pelo uso de asteriscos para
separar as várias partes do poema, que obedece a uma lógica fragmentária e
descontínua. O tempo, nesta composição, não é assunto para reflexão filosófica,
ele se exterioriza no próprio corpo do poema, que pode ser lido como um estudo
sobre o tempo.
O tema da viagem como deslocamento geográfico (real ou
imaginário) está presente em outra seção do livro, intitulada Cuidados, em que o poeta apresenta um
roteiro vai de Praga, Trieste e Odessa até Treblinka e o Gueto de Varsóvia,
revisitando a Shoah e o suicídio de Paul Celan no rio Sena. Este é o conjunto
de poemas mais intensos do livro, por todas as referências históricas
envolvidas, e culmina com uma peça de caráter mais reflexivo, intitulada Mecânica: “Todo lugar de regresso / a
outro caminho. / Toda mecânica implícita / em cada movimento. / O ciclo de
luzes / que repercute o avesso. / As portas abertas, / sua memória incluída. /
Seu tempo e sua perda, / o que coagula devagar / – meu caro Zamiátin – / mas
contra o desalento”. As peças finais do
volume, elencadas sob o título Do seu
aroma, são talvez as mais subjetivas que o autor escreveu e são antecedidas
por uma epígrafe de Roland Barthes, para quem “o outro está inscrito,
inscreveu-se no texto, deixou seu rastro, múltiplo”.
A poesia de André Dick,
mesmo quando remete a personagens e situações reais, nunca as nomeia, como é
rotineiro na poesia de cunho confessional; ele oculta o que é particular e
transforma a matéria recordada em performance
poética, em um jogo jogado com o leitor, a quem cabe – como no teatro sonhado
por Mallarmé – juntar as peças e compor a sua própria narrativa. Ou ainda, como
o próprio diz em seu
Segredo : “Parece uma paisagem, / mas não é exatamente uma. /
Mas como se risca, se / desenha, se escreve? / Pegadas, um manuscrito – / pedem
que haja uma / luz circunscrita / ao momento em que / a mão torna a direção /
correta de saída. / Volta-se contra quem recua / diante da possibilidade / de o
retorno não existir / mais como o regresso / em que se pondera / o rosto mais
claro”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário