sexta-feira, 31 de julho de 2015

A LUNETA MUTANTE DE FABIANO CALIXTO




Fabiano Calixto publicou em 2000 o seu livro de estreia, Fábrica, que denota, já no título, tanto a paisagem industrial quanto a própria manufatura poética, como observou Horácio Costa no texto de apresentação ao volume. Já na epígrafe de Rimbaud – “La ville, avec sa fumée et ses bruits de métiers...” a referência urbana e fabril se impõe e será desenvolvida num conjunto consistente de poemas, construídos conforme princípios de concisão e alta precisão vocabular: “asfalto / pneus e motores / repouso de gotas / chuva / -- o brilho / dos postes / reabastece a ideia / de universo” (maio). Ao longo da leitura, somos surpreendidos por “máquinas / vapores / produtos reagentes / peças às dezenas” (máquinas / fábrica 2), pelo “muro-vitiligo” (último dia / fábrica 3) e ainda por “caixas metálicas / que exalam ferrugens” (sobre caixas metálicas), imagens de uma “coagulada paisagem” (quase calçada) em que nos deparamos com “ratos cruzando / ruas desertas” e “baratas explicando / metáforas” (fragmentos). 

O cenário urbano e industrial, no entanto, é apenas um dos planos narrativos do volume, em intersecção com outro plano, subjetivo ou intimista: “mãos emolduram / o rosto / bomba explode / avessa / lágrimas / atravessam / o piso / exemplo de silêncio” (em vidro), “uma hora / de música / um quinto / cigarro / para passar o tempo / -- rumor de fresta / noite de maio / uma espera / acesa / durando uma estrela”.  O elemento construtivista da poesia de Fabiano Calixto, poeta pernambucano que reside na cidade de Santo André, situada no ABC paulista, deriva da leitura atenta de João Cabral de Melo Neto e da Poesia Concreta, mas também de poetas que derivam da vanguarda concretista, como Paulo Leminski e Régis Bonvicino, este último autor do livro Ossos de borboleta, cuja poesia concentrada exerceu influência em muitos poetas jovens na década de 1990, entre eles o próprio Fabiano Calixto, Tarso de Melo e Kleber Mantovani, que juntos editaram os três números da revista literária Monturo.  Bonvicino também divulgou no país poetas norte-americanos como Robert Creeley, Michael Palmer e Charles Bernstein (este último, integrante do movimento literário conhecido como Language Poetry), que foram referências importantes para os jovens poetas reunidos em torno de Monturo. 

É possível verificar, nesta primeira fase da poesia de Fabiano Calixto (e também no livro A lapso, de Tarso de Melo, publicado em 1999), diversos procedimentos que derivam desse repertório minimalista, como o uso exclusivo de letras minúsculas, o espaço duplo entre as linhas, os verbos no infinitivo, a elipse, a metonímia e certas imagens e metáforas de sabor surrealizante, à maneira dos “botões tenros” de Gertrude Stein: “matemático-céu / onde nuvens inteiras / fracionam o céu” (máquinas / fábrica 2), “mamífero-ave / de manobras concisas / costura águas / com seu voo”. O uso ostensivo desses recursos é verificável também na poesia inicial de outros poetas que se aproximaram de Bonvicino, como é o caso de Virna Teixeira, Angela de Campos e André Dick, que constituíram uma das vertentes da poesia brasileira na década de 1990.

No caso específico de Fabiano Calixto, a influência do autor de Ossos de borboleta será reduzida nas obras posteriores, que estabelecem outros diálogos intertextuais, como é o caso de Música possível, seu segundo livro de poemas, publicado em 2006, cujo titulo remete a um verso de Carlos Drummond de Andrade: “A música se embala no possível, / no finito redondo, em que se crispa / uma agonia moderna”. Nesta nova coletânea, o corte preciso das linhas, o discurso recortado pela elipse e a dimensão geométrica ainda estão presentes, mas o eu lírico se sobrepõe, pela fluência melódica dos versos, timbre intimista e certo confessionalismo, que não decai, porém, no sentimentalismo, como por exemplo no poema Quanto,: “entre noites / melancólicas, / ruas sem saída, / dia após dia / piorando a ferida / aberta”, construído num  fluxo narrativo linear, em primeira pessoa e versos curtos, dispostos numa coluna vertical. 

Simplicidade e recorte preciso de imagens, à maneira do Objetivismo de William Carlos Williams, estão presentes numa composição dividida em três estrofes, intitulada Uma tarde, em que lemos: “pedras / aquário / alguns legumes / na água (...) / nesta tarde / apenas a luz / do sol / acariciando cores / no vitral”. Em outra peça, intitulada Na rota do Jardim Alvorada, encontramos essa mesma leveza na criação de uma paisagem: “ônibus quase / vazio – a lua -- / semana da paixão / brisa leve / carregando / pétalas entre / conversas / de esquina”. Se no livro anterior a imagem fabril era a dominante, em Música possível é o cotidiano de pequenas ações, como ouvir um disco dos Beatles, fumar um cigarro, caminhar à noite nas ruas, embora também surjam imagens de “cigarras serrando / sentidos ao meio”, de “relógios” que “pautam o caos” e de “ratos” que “defecam / sobre os livros”, figuras herdadas da poética de Bonvicino, que atribui aos animais ou a objetos inanimados ações impossíveis. 

Em outra peça, intitulada Paisagem, dedicada a Ronald Polito, encontramos uma linha de alto impacto semântico: “a paisagem brota como de um aborto”, com o jogo quase anagramático entre os termos brota e aborto. No poema Horário de almoço, Mauá, outro verso incisivo: “eu: vivamente morto: / respiro), construído como um paradoxo barroco. Na segunda parte do livro, Ônix, encontramos uma das composições mais intimistas de Fabiano Calixto, Canção para minha Avó Preta, que consegue moldar a memória familiar (real ou inventada) em versos fluentes, melódicos e narrativos que escapam ao risco da facilidade sentimental e retórica: “noite clara / como se, da batida / dos atabaques, se / desprendessem / sóis diversos / ajudando a lua / a compor a paisagem”. Em três outras peças desta seção do livro, o poeta, sob o influxo de Antonio Risério, dedica-se ao oriki, ou canto ritual de louvor aos orixás: Oxumaré entre os iorubás, Iemanjá e A zanga de Exu, este último, de apenas oito linhas curtas, talvez o poema melhor realizado da série: “quando / a sanha / a zanga / insana / o consome / Exu sangra / com os pés / a pedra”.

Domínio técnico, imaginação, sensibilidade e variedade temática fazem de Música possível o melhor livro de Fabiano Calixto, e talvez um dos melhores livros de poesia publicados por autores de sua geração. O mesmo não podemos dizer de Sanguínea, terceiro livro publicado pelo poeta, e o mais irregular de todos. A “retórica das dedicatórias” apontada por Marcos Siscar em seu posfácio ao volume soa antipática, bajulatória;  já nas primeiras páginas do livro, encontramos poemas endereçados a autores de prestígio midiático e próximos às revistas Inimigo Rumor / Modo de Usar; é algo que não acrescenta nada aos textos, mas indica o contexto em que foram escritos. É uma explicitação de relações de amizade e de grupo literário, não de um ideário estético ou ideológico.  O título do livro, Sanguínea, motiva diversas leituras – vitalidade, visceralidade, expressividade, qualidades que notamos, sobretudo, em Fábrica e Música possível, mas não nesta coleção de poemas, em que há uma dose maior de artificialidade, como se o autor buscasse, conscientemente, adotar outra linguagem, diferente da sua, por motivos menos poéticos do que práticos: para se firmar como membro de um grupo literário, de notória visibilidade midiática e editorial. 

Há, sim, bons poemas em Sanguínea, naqueles em que notamos vestígios de sinceridade do poeta – textos que foram escritos por uma necessidade íntima de retratar um cenário, estado de espírito ou de testar recursos da criação poética pela própria beleza de uma sonoridade, de uma metáfora, não para agradar a quem quer que seja. Assim, por exemplo, em Uma paisagem de São Paulo,onde lemos: “antes da chuva, o mendigo / já estava morto / (uma flor suja – pétalas / despencando da camiseta – sua / única coroa). Pedaços do esqueleto, um dos raros poemas em prosa escritos até então por Fabiano Calixto, também é notável pela fluência melódica e imagens de alto impacto: “se eu quebrar com meus sonhos / e só restar o tédio medonho, / a decrepitude, a tristeza infinita / o monturo (na escrita, na vida)”, texto que confirma o timbre melancólico, desencantado, do poeta. Outra composição que se destaca, agora pela extrema sutileza da escrita, é Delicadeza: “novamente a vi dormir / novamente o cheiro / e aquele último trovão / acendeu todo o quarto / iluminou sua nuca”. 

Há poemas longos, com dicção próxima à prosa e coloquialidade mais acentuada, como Simão no deserto, The ballad of Sid & Nancy e a série de “e-mails” – para Torquato Neto, Marcelo Montenegro, Adriana Calcanhoto e outras personalidades do mundo literário e musical, vivas ou falecidas – que revelam um esforço em testar novas possibilidades, renovar o arsenal linguístico, mas que se perdem, muitas vezes, pelo abuso de referências, citações e emulações dos autores homenageados; é uma poesia de circunstância, limitada pelo contexto excessivo. A melhor poesia de Sanguínea não está nas composições endereçadas a amigos, mas naquelas que o autor escreveu porque era preciso escrevê-las, sem nenhuma motivação além do próprio jogo textual.

Nominata morfina, livro mais recente de Fabiano Calixto, publicado em 2014, é uma surpreendente coleção de poemas em prosa, sem um desenvolvimento narrativo linear, que mescla referências biográficas, literárias, históricas e políticas de maneira bastante livre e fluente. É possível pensarmos aqui na ruptura dos gêneros literários, inaugurada entre o final do século XVIII e início do XIX por Goethe, no Fausto (mescla de poesia-teatro-narrativa) e Baudelaire, nos Pequenos poemas em prosa – obra que desencadeou a Temporada no inferno de Rimbaud e os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, até as Galáxias de Haroldo de Campos e o Catatau de Leminski. A escrita poética híbrida permite incorporar todos os discursos possíveis em seu fluxo melódico: da lista de compras à bula de remédio, da partitura sinfônica a cálculos matemáticos, transformados em elementos narrativos, sem perder a sua condição de índices ou ícones, conforme as categorias da semiótica de Charles Peirce. No livro de Fabiano Calixto, a miscigenação de signos é bem mais modesta: encontramos a forma do diálogo teatral, no fragmento intitulado Delirismo – Um poema sobre o tempo (para vozes), em que há personagens como O Cacto Mentecapto, O Respeitável Público, Nicole Kidman, Gregório de Matos e o Bandido da Luz Vermelha; a forma musical do tema e variações, no fragmento intitulado Herança (Presto), em que a mesma frase é repetida, ao longo de seis páginas, em diferentes corpos de letras, cada vez menores, até a escrita tornar-se ilegível; a paródia da linguagem dos e-mails, do diário, da crônica, da letra de canção popular etc. 

Em quase todos os textos que compõem o volume – cada fragmento é independente dos demais, sem um fio condutor temático –, o eu lírico está presente, numa ego trip narcisista. A linguagem dos fragmentos líricos é coloquial, sem cair, porém, nas facilidades excessivas dos poetas prestigiados pela revista Modo de usar & Co., da qual Fabiano Calixto é um dos editores e propagandistas. Podemos estabelecer paralelos entre esse coloquialismo poético sério e aquele praticado por poetas como Ademir Assunção, em A voz do ventríloquo, e Rodrigo Garcia Lopes, em Experiências extraordinárias, e ainda Roberto Piva (citado numa das epígrafes do livro) em Estranhos sinais de Saturno. Todos estes poetas incorporaram o universo pop das histórias em quadrinhos, do cinema e do rock and roll, misturados às referências “cultas” da poesia e da prosa de vanguarda, da filosofia ou da música de concerto, rompendo diques entre as categorias estáticas de “alto” e “baixo” repertório. No caso de Fabiano Calixto, esse trânsito de linguagens e territórios falhou em Sanguínea, mas obteve ótimos momentos em Nominata morfina, em especial nos fragmentos intitulados Entr’act, O coma de Cronos, Buceta mundo, Autópsia abstrata, para citar poucos exemplos. É preciso assinalar ainda que o livro, publicado 50 anos após o golpe militar de 1964, é dedicado pelo autor a “todos os mortos e desaparecidos durante a violenta ditadura militar brasileira”, tema que comparece em várias passagens do livro, registrando um dos momentos mais dramáticos de nossa história recente.

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