Fabiano Calixto publicou em 2000
o seu livro de estreia, Fábrica, que
denota, já no título, tanto a paisagem industrial quanto a própria manufatura
poética, como observou Horácio Costa no texto de apresentação ao volume. Já na
epígrafe de Rimbaud – “La ville, avec sa fumée et ses bruits de métiers...” a
referência urbana e fabril se impõe e será desenvolvida num conjunto
consistente de poemas, construídos conforme princípios de concisão e alta
precisão vocabular: “asfalto / pneus e motores / repouso de gotas / chuva / --
o brilho / dos postes / reabastece a ideia / de universo” (maio). Ao longo da leitura, somos surpreendidos por “máquinas /
vapores / produtos reagentes / peças às dezenas” (máquinas / fábrica 2), pelo “muro-vitiligo” (último dia / fábrica 3) e ainda por “caixas metálicas / que exalam
ferrugens” (sobre caixas metálicas),
imagens de uma “coagulada paisagem” (quase
calçada) em que nos deparamos com “ratos cruzando / ruas desertas” e
“baratas explicando / metáforas” (fragmentos).
O cenário urbano e industrial, no entanto, é apenas um dos planos narrativos do
volume, em intersecção com outro plano, subjetivo ou intimista: “mãos emolduram
/ o rosto / bomba explode / avessa / lágrimas / atravessam / o piso / exemplo
de silêncio” (em vidro), “uma hora /
de música / um quinto / cigarro / para passar o tempo / -- rumor de fresta /
noite de maio / uma espera / acesa / durando uma estrela”. O elemento construtivista da poesia de
Fabiano Calixto, poeta pernambucano que reside na cidade de Santo André,
situada no ABC paulista, deriva da leitura atenta de João Cabral de Melo Neto e
da Poesia Concreta, mas também de poetas que derivam da vanguarda concretista,
como Paulo Leminski e Régis Bonvicino, este último autor do livro Ossos de borboleta, cuja poesia
concentrada exerceu influência em muitos poetas jovens na década de 1990, entre
eles o próprio Fabiano Calixto, Tarso de Melo e Kleber Mantovani, que juntos
editaram os três números da revista literária Monturo. Bonvicino também
divulgou no país poetas norte-americanos como Robert Creeley, Michael Palmer e
Charles Bernstein (este último, integrante do movimento literário conhecido
como Language Poetry), que foram
referências importantes para os jovens poetas reunidos em torno de Monturo.
É possível verificar, nesta
primeira fase da poesia de Fabiano Calixto (e também no livro A lapso, de Tarso de Melo, publicado em
1999), diversos procedimentos que derivam desse repertório minimalista, como o
uso exclusivo de letras minúsculas, o espaço duplo entre as linhas, os verbos
no infinitivo, a elipse, a metonímia e certas imagens e metáforas de sabor
surrealizante, à maneira dos “botões tenros” de Gertrude Stein: “matemático-céu
/ onde nuvens inteiras / fracionam o céu” (máquinas
/ fábrica 2), “mamífero-ave / de manobras concisas / costura águas / com
seu voo”. O uso ostensivo desses recursos é verificável também na poesia
inicial de outros poetas que se aproximaram de Bonvicino, como é o caso de
Virna Teixeira, Angela de Campos e André Dick, que constituíram uma das
vertentes da poesia brasileira na década de 1990.
No caso específico de Fabiano Calixto, a influência do autor de Ossos de borboleta será reduzida nas obras posteriores, que estabelecem outros diálogos intertextuais, como é o caso de Música possível, seu segundo livro de poemas, publicado em 2006, cujo titulo remete a um verso de Carlos Drummond de Andrade: “A música se embala no possível, / no finito redondo, em que se crispa / uma agonia moderna”. Nesta nova coletânea, o corte preciso das linhas, o discurso recortado pela elipse e a dimensão geométrica ainda estão presentes, mas o eu lírico se sobrepõe, pela fluência melódica dos versos, timbre intimista e certo confessionalismo, que não decai, porém, no sentimentalismo, como por exemplo no poema Quanto,: “entre noites / melancólicas, / ruas sem saída, / dia após dia / piorando a ferida / aberta”, construído num fluxo narrativo linear, em primeira pessoa e versos curtos, dispostos numa coluna vertical.
No caso específico de Fabiano Calixto, a influência do autor de Ossos de borboleta será reduzida nas obras posteriores, que estabelecem outros diálogos intertextuais, como é o caso de Música possível, seu segundo livro de poemas, publicado em 2006, cujo titulo remete a um verso de Carlos Drummond de Andrade: “A música se embala no possível, / no finito redondo, em que se crispa / uma agonia moderna”. Nesta nova coletânea, o corte preciso das linhas, o discurso recortado pela elipse e a dimensão geométrica ainda estão presentes, mas o eu lírico se sobrepõe, pela fluência melódica dos versos, timbre intimista e certo confessionalismo, que não decai, porém, no sentimentalismo, como por exemplo no poema Quanto,: “entre noites / melancólicas, / ruas sem saída, / dia após dia / piorando a ferida / aberta”, construído num fluxo narrativo linear, em primeira pessoa e versos curtos, dispostos numa coluna vertical.
Simplicidade e recorte preciso de imagens, à maneira do Objetivismo
de William Carlos Williams, estão presentes numa composição dividida em três
estrofes, intitulada Uma tarde, em
que lemos: “pedras / aquário / alguns legumes / na água (...) / nesta tarde /
apenas a luz / do sol / acariciando cores / no vitral”. Em outra peça,
intitulada Na rota do Jardim Alvorada,
encontramos essa mesma leveza na criação de uma paisagem: “ônibus quase / vazio
– a lua -- / semana da paixão / brisa leve / carregando / pétalas entre / conversas
/ de esquina”. Se no livro anterior a imagem fabril era a dominante, em Música possível é o cotidiano de
pequenas ações, como ouvir um disco dos Beatles, fumar um cigarro, caminhar à
noite nas ruas, embora também surjam imagens de “cigarras serrando / sentidos
ao meio”, de “relógios” que “pautam o caos” e de “ratos” que “defecam / sobre
os livros”, figuras herdadas da poética de Bonvicino, que atribui aos animais
ou a objetos inanimados ações impossíveis.
Em outra peça, intitulada Paisagem, dedicada a Ronald Polito,
encontramos uma linha de alto impacto semântico: “a paisagem brota como de um
aborto”, com o jogo quase anagramático entre os termos brota e aborto. No poema Horário de almoço, Mauá, outro verso
incisivo: “eu: vivamente morto: / respiro), construído como um paradoxo
barroco. Na segunda parte do livro, Ônix,
encontramos uma das composições mais intimistas de Fabiano Calixto, Canção para minha Avó Preta, que
consegue moldar a memória familiar (real ou inventada) em versos fluentes,
melódicos e narrativos que escapam ao risco da facilidade sentimental e
retórica: “noite clara / como se, da batida / dos atabaques, se / desprendessem
/ sóis diversos / ajudando a lua / a compor a paisagem”. Em três outras peças
desta seção do livro, o poeta, sob o influxo de Antonio Risério, dedica-se ao oriki, ou canto ritual de louvor aos
orixás: Oxumaré entre os iorubás, Iemanjá e A
zanga de Exu, este último, de apenas oito linhas curtas, talvez o poema
melhor realizado da série: “quando / a sanha / a zanga / insana / o consome /
Exu sangra / com os pés / a pedra”.
Domínio técnico, imaginação, sensibilidade e variedade temática fazem de
Música possível o melhor livro de
Fabiano Calixto, e talvez um dos melhores livros de poesia publicados por
autores de sua geração. O mesmo não podemos dizer de Sanguínea, terceiro livro publicado pelo poeta, e o mais irregular
de todos. A “retórica das dedicatórias” apontada por Marcos Siscar em seu
posfácio ao volume soa antipática, bajulatória;
já nas primeiras páginas do livro, encontramos poemas endereçados a
autores de prestígio midiático e próximos às revistas Inimigo Rumor / Modo de Usar;
é algo que não acrescenta nada aos textos, mas indica o contexto em que foram
escritos. É uma explicitação de relações de amizade e de grupo literário, não
de um ideário estético ou ideológico. O
título do livro, Sanguínea, motiva
diversas leituras – vitalidade, visceralidade, expressividade, qualidades que
notamos, sobretudo, em Fábrica e Música possível, mas não nesta coleção
de poemas, em que há uma dose maior de artificialidade, como se o autor
buscasse, conscientemente, adotar outra linguagem, diferente da sua, por
motivos menos poéticos do que práticos: para se firmar como membro de um grupo
literário, de notória visibilidade midiática e editorial.
Há, sim, bons poemas
em Sanguínea, naqueles em que notamos
vestígios de sinceridade do poeta – textos que foram escritos por uma
necessidade íntima de retratar um cenário, estado de espírito ou de testar
recursos da criação poética pela própria beleza de uma sonoridade, de uma
metáfora, não para agradar a quem
quer que seja. Assim, por exemplo, em Uma
paisagem de São Paulo,onde lemos:
“antes da chuva, o mendigo / já estava morto / (uma flor suja – pétalas /
despencando da camiseta – sua / única coroa). Pedaços do esqueleto, um dos raros poemas em prosa escritos até
então por Fabiano Calixto, também é notável pela fluência melódica e imagens de
alto impacto: “se eu quebrar com meus sonhos / e só restar o tédio medonho, / a
decrepitude, a tristeza infinita / o monturo (na escrita, na vida)”, texto que
confirma o timbre melancólico, desencantado, do poeta. Outra composição que se
destaca, agora pela extrema sutileza da escrita, é Delicadeza: “novamente a vi dormir / novamente o cheiro / e aquele
último trovão / acendeu todo o quarto / iluminou sua nuca”.
Há poemas longos,
com dicção próxima à prosa e coloquialidade mais acentuada, como Simão no deserto, The ballad of Sid & Nancy e a série de “e-mails” – para Torquato Neto, Marcelo Montenegro, Adriana
Calcanhoto e outras personalidades do mundo literário e musical, vivas ou
falecidas – que revelam um esforço em testar novas possibilidades, renovar o
arsenal linguístico, mas que se perdem, muitas vezes, pelo abuso de
referências, citações e emulações dos autores homenageados; é uma poesia de
circunstância, limitada pelo contexto excessivo. A melhor poesia de Sanguínea não está nas composições
endereçadas a amigos, mas naquelas que o autor escreveu porque era preciso
escrevê-las, sem nenhuma motivação além do próprio jogo textual.
Nominata morfina, livro mais recente de Fabiano Calixto, publicado em 2014, é uma surpreendente coleção de poemas em prosa, sem um desenvolvimento narrativo linear, que mescla referências biográficas, literárias, históricas e políticas de maneira bastante livre e fluente. É possível pensarmos aqui na ruptura dos gêneros literários, inaugurada entre o final do século XVIII e início do XIX por Goethe, no Fausto (mescla de poesia-teatro-narrativa) e Baudelaire, nos Pequenos poemas em prosa – obra que desencadeou a Temporada no inferno de Rimbaud e os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, até as Galáxias de Haroldo de Campos e o Catatau de Leminski. A escrita poética híbrida permite incorporar todos os discursos possíveis em seu fluxo melódico: da lista de compras à bula de remédio, da partitura sinfônica a cálculos matemáticos, transformados em elementos narrativos, sem perder a sua condição de índices ou ícones, conforme as categorias da semiótica de Charles Peirce. No livro de Fabiano Calixto, a miscigenação de signos é bem mais modesta: encontramos a forma do diálogo teatral, no fragmento intitulado Delirismo – Um poema sobre o tempo (para vozes), em que há personagens como O Cacto Mentecapto, O Respeitável Público, Nicole Kidman, Gregório de Matos e o Bandido da Luz Vermelha; a forma musical do tema e variações, no fragmento intitulado Herança (Presto), em que a mesma frase é repetida, ao longo de seis páginas, em diferentes corpos de letras, cada vez menores, até a escrita tornar-se ilegível; a paródia da linguagem dos e-mails, do diário, da crônica, da letra de canção popular etc.
Nominata morfina, livro mais recente de Fabiano Calixto, publicado em 2014, é uma surpreendente coleção de poemas em prosa, sem um desenvolvimento narrativo linear, que mescla referências biográficas, literárias, históricas e políticas de maneira bastante livre e fluente. É possível pensarmos aqui na ruptura dos gêneros literários, inaugurada entre o final do século XVIII e início do XIX por Goethe, no Fausto (mescla de poesia-teatro-narrativa) e Baudelaire, nos Pequenos poemas em prosa – obra que desencadeou a Temporada no inferno de Rimbaud e os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, até as Galáxias de Haroldo de Campos e o Catatau de Leminski. A escrita poética híbrida permite incorporar todos os discursos possíveis em seu fluxo melódico: da lista de compras à bula de remédio, da partitura sinfônica a cálculos matemáticos, transformados em elementos narrativos, sem perder a sua condição de índices ou ícones, conforme as categorias da semiótica de Charles Peirce. No livro de Fabiano Calixto, a miscigenação de signos é bem mais modesta: encontramos a forma do diálogo teatral, no fragmento intitulado Delirismo – Um poema sobre o tempo (para vozes), em que há personagens como O Cacto Mentecapto, O Respeitável Público, Nicole Kidman, Gregório de Matos e o Bandido da Luz Vermelha; a forma musical do tema e variações, no fragmento intitulado Herança (Presto), em que a mesma frase é repetida, ao longo de seis páginas, em diferentes corpos de letras, cada vez menores, até a escrita tornar-se ilegível; a paródia da linguagem dos e-mails, do diário, da crônica, da letra de canção popular etc.
Em quase todos os textos que compõem o volume – cada fragmento é independente
dos demais, sem um fio condutor temático –, o eu lírico está presente, numa ego trip narcisista. A linguagem dos
fragmentos líricos é coloquial, sem cair, porém, nas facilidades excessivas dos
poetas prestigiados pela revista Modo de
usar & Co., da qual Fabiano Calixto é um dos editores e propagandistas.
Podemos estabelecer paralelos entre esse coloquialismo poético sério e aquele
praticado por poetas como Ademir Assunção, em A voz do ventríloquo, e Rodrigo Garcia Lopes, em Experiências extraordinárias, e ainda
Roberto Piva (citado numa das epígrafes do livro) em Estranhos sinais de Saturno. Todos estes poetas incorporaram o
universo pop das histórias em quadrinhos, do cinema e do rock and roll, misturados
às referências “cultas” da poesia e da prosa de vanguarda, da filosofia ou da
música de concerto, rompendo diques entre as categorias estáticas de “alto” e
“baixo” repertório. No caso de Fabiano Calixto, esse trânsito de linguagens e
territórios falhou em Sanguínea, mas
obteve ótimos momentos em Nominata
morfina, em especial nos fragmentos intitulados Entr’act, O coma de Cronos, Buceta mundo, Autópsia abstrata, para
citar poucos exemplos. É preciso assinalar ainda que o livro, publicado 50 anos
após o golpe militar de 1964, é dedicado pelo autor a “todos os mortos e
desaparecidos durante a violenta ditadura militar brasileira”, tema que
comparece em várias passagens do livro, registrando um dos momentos mais
dramáticos de nossa história recente.
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