Joca Reiners Terron é conhecido por
sua obra ficcional, em que se destacam os romances Não há nada lá (2001), Curva
do rio sujo (2004) e os de narrativas breves Hotel Hell (2003) e Sonho
interrompido por guilhotina (2006), mas o autor também publicou dois
notáveis volumes de poesia: Eletroencefalodrama
(1998) e Animal anônimo (2002). Sua literatura é geralmente relacionada com o
universo marginal ou “transgressivo” por seu diálogo com as histórias em
quadrinhos, música pop, filmes de ficção científica, pelas colagens ficcionais
(Aleister Crowley, Jimi Hendrix e William Burroughs aparecem como personagens
em Não há nada lá), bem como pela
acentuada coloquialidade e atmosfera boêmia que recorda a prosa de Charles
Bukowski, referência temática e mesmo comportamental para muitos prosadores
brasileiros na década de 1990. Este universo simbólico, porém, não resume toda a escrita do autor e seria injusto
atribuir a ele o rótulo de pop ou underground, atitude que não ilumina a
multiplicidade de aspectos de sua obra. Joca Reiners Terron é, sobretudo, um
bom leitor; a afirmação pode parecer
inútil ou tautológica, na medida em que todo bom poeta e ficcionista é acima de
tudo um bom leitor, mas no caso de sua escrita poética as trilhas intertextuais
conduzem a um singular campo de metamorfose: os signos que remetem a outros
textos, imagens e autores são subvertidos, transmutados, e dão origem a outros
textos, inconfundivelmente pessoais. Joca Reiners Terron é um dos raros poetas
de sua geração que têm voz única, terrosa, ou antes terroniana, sem deixar de ser um vasto palimpsesto de outras vozes
e visões. Em seu livro de estreia, Eletroencefalodrama,
notamos a presença do ready-made nos
textos visuais Hi-A. Zo, inseridos ao longo do volume, à maneira dos recortes e
montagens de desenhos e fotografias extraídos de revistas e almanaques antigos realizados
por Sebastião Nunes na Antologia mamaluca
e Valêncio Xavier em O mez da grippe;
poemas visuais construídos a partir de uma sequência cinética de ampliações da
foto de uma folha de árvore (Constellatio)
ou pela espacialização das palavras e substituição de vogais por fotos de fases
da lua (“a lua / de lingerie / ao longe / ri de mim”); o flash bem humorado de cenas do cotidiano (“semáforos / têm três
olhos / mas só abrem um / de cada vez”; “não existem / placas de trânsito / em
braile”); o erotismo sutil (“Cumprimentei a Noite / ela sorriu e me mostrou /
seus peitos brancos”); a paródia de citações de autores célebres (“quando
morrer / quero ser um livro”, com eco de Mallarmé); a incorporação do grotesco
e do fescenino (“Caso o mundo te visse / com olhos de Medusa, / tornado seu
corpo seria / pedra duríssi- / ma. Sua alma, mineral, e / pequenas turquesas
(aqui e / ali) no olho / Precioso”, lemos em Uma joia no ânus). A forma clássica do soneto é recriada numa peça
memorável, Primeiro movimento, que
nos surpreende pelo ritmo sintático inusitado, construído pela pontuação
abrupta, cortes elípticos e jogos sonoros de rimas internas, aliterações e
paronomásias, que modulam uma dicção áspera, de quebra-língua: “brinco inca;
câmara de tintas; finca pé ante o nono sono; / campo bento em que Onan brinca; / --
Palmo calmo de pele; pele-nuca; / naco branco que toda boca trinca; /
lacero-te; mas; não; nem; nunca; nunca”. Em outra composição, intitulada Mantenha distância, o poeta condensa em
linhas enxutas o seu antidiscurso de simultaneidades e sincronias: ”Acudo / os
/ sentidos com / a tosca lasca / do risco, / visto uma / pele desnuda / de
Puma, / arisco / assisto ao / rebolado de / avenidas, / sem susto. / Resisto
ainda / aos obeliscos / e cabarés, / me arrisco”, com trabalho notável de ritmo
e rimas. As linhas são recortadas numa operação de “violência organizada contra
a língua” (Jakobson), buscando o efeito sonoro áspero, rascante, algo entre a
guitarra de punk rock e o
expressionismo abstrato de Jackson Pollock. A língua pedrosa de Joca Reiners
Terron torna-se ainda mais dissonante e brutalista em seu segundo livro de
poemas, Animal anônimo, publicado em
2002, que reúne breves paisagens verbais da cidade de São Paulo, tendo como leitmotiv o Elevado Costa e Silva,
conhecido como “Minhocão”: “Elevado onde / cantam os canos / da GARRA / nascem
da noite / seus animais / minúsculos / a vérmina / a devorá-la / dá-se ao
osso”. A violência urbana, tema comum aos prosadores do período, atravessa os
poemas de Animal anônimo, onde até “o
vigia / do templo budista usa / uma glock 9 milímetros ”, imagem
que recorda as graphic novels de
Frank Miller ou os filmes de Tarantino. Personagens de seriados e histórias em
quadrinhos, aliás, invadem a narrativa poética, de maneira alegórica ou
paródica, criando as mais insólitas situações, como acontece no poema Sex horror show: “Se Godzila goza /
Tóquio em polvorosa / cai uma chuva viscosa / como manga com leite. / O Drácula
ejacula / e o seu dia encurta / King Kong esporra, range / esfrega no Empire
State / e mostra a língua hirsuta / A noite se alonga, larga / pra Kong e
Jéssica Lange / que tira a tanga e sonha / ser mulher-macaco, a Monga / que
sacode a grade, a luz apaga / e a noite segue, de encontro / em encontro, numa
suruba monstro”. Escatologia, monstruosidade e sexo bizarro são algumas das
obsessões favoritas do poeta, encenadas em narrativas poéticas dispostas em
diferentes seções do livro, que incorporam ainda personagens criados pelo
próprio poeta, como MC Medo e DJ Fedor, encontrados mortos no poema Um giro no maverick dos subúrbios,
vítimas de um desconhecido serial killer.
O tom fantasmagórico ou circense dos poemas narrativos de Terron estabelece um
diálogo textual com o poeta “maldito” por excelência da década de 1960, Roberto
Piva, aliás homenageado numa das peças do volume, intitulada Cine Piva, onde lemos: “Largos são invadidos
por pastores com ternos / pequenos demais acompanhados por missionários /
ex-gays prestes a morrer de gestos / exagerados e políticos pederastas”, linhas
de fluência melódica próxima ao andamento da prosa, assim como acontece em Paranoia ou Piazzas, de Piva. A linguagem desbocada do poeta “maldito” de São
Paulo também aparece em pequenos poemas irônicos ou satíricos como “anseia /
pela buceta / da sereia / coisas / impossíveis” e “a poesia é inútil / o poeta
/ perigoso / (...) enfia este poema / no seu cu / agora canta”. Farpa, aspereza
e atrito estão presentes em todo o volume, combinados a um rigoroso
construtivismo visual que orienta a própria concepção visual do livro, onde
trechos de poemas, com as palavras recortadas, quase ilegíveis e em fonte
maior, são colocados nas páginas pares, em nítido contraste com os poemas que
aparecem nas páginas ímpares, numa dialética entre som e ruído, figura e
sentido. Entre as duas colunas de textos, dispostas à esquerda (pares) e à
direita (ímpares), o autor inseriu borrões de tinta que simulam formas de
folhas, insetos, pegadas ou aves, ampliando a zona de indeterminação. Os poemas
respondem a esse torvelinho em sua própria disposição espacial e na variação de
fontes e corpos de letras, recursos que derivam do Lance de dados de Mallarmé e seus desdobramentos em Apollinaire, na
Poesia Concreta, mas que também se aproximam das montagens e colagens dadaístas
e surrealistas, em especial as pinturas “MERZ” de Kurt Schwitters. Não é
possível concluirmos este artigo sem fazermos referência à mitológica editora Ciência do acidente, fundada por Terron
no final da década de 1990, responsável pela publicação de obras seminais de
Valêncio Xavier, Glauco Mattoso, Manoel Carlos Karam, Ademir Assunção e outros
poetas e prosadores situados, na época, à margem do mainstream. Todos os livros da Ciência
do acidente ainda hoje chamam a nossa atenção pelos ousados projetos de
arte e apurado cuidado gráfico, que podem ser creditados ao olho vanguardista
de Terron, exilado na prosa à maneira de Rimbaud na Abissínia, em busca de
outras cores, aromas e percepções.
Claudio Daniel
é poeta, professor de Literatura Portuguesa e colunista da CULT. Publicou,
entre outros títulos, os livros de poesia Cadernos
bestiais e Esqueletos do nunca
(Lumme Editor, 2015).
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