quarta-feira, 29 de julho de 2015

DUAS ÁGUAS NA POESIA DE CARLITO AZEVEDO



















Carlito Azevedo publicou em 2001 a antologia Sublunar, que reúne textos de seus quatro primeiros livros de poesia: Collapsus linguae (1991), As banhistas (1993), Sob a noite física (1996) e Versos de circunstância (2001)[1]. A leitura dessa coletânea, dividida não por ordem cronológica, mas temática, seguindo o exemplo da Antologia poética de Carlos Drummond de Andrade, permite identificar as linhas de força do autor carioca, conhecido como editor da revista literária Inimigo rumor, e também os seus desníveis de realização estética, sobretudo em sua poesia mais recente. É possível verificarmos duas fases bem distintas na obra de Azevedo: a primeira, que descende da leitura de João Cabral de Melo Neto, Lezama Lima, Haroldo de Campos, da poesia francesa simbolista e contemporânea; e a segunda que dialoga com Manuel Bandeira, Cacaso, Ana Cristina César, Francisco Alvim e poetas portugueses de uma dicção mais fácil e cotidiana, como Adília Lopes, que assina a epígrafe de Sublunar: “Falo de ovos estrelados, coisa caricata, suja, / sublunar, como as maminhas / e o cão animal que ladra” (sublunar, recordemos, é um conceito de Aristóteles que se refere ao mundo sensível, em oposição ao mundo supralunar, celeste). 

Se colocarmos as duas fases do poeta lado a lado, seguindo o método poundiano de crítica via comparação de textos, teremos a impressão de que se trata de dois autores completamente diferentes, no repertório, conceitos e resultados estéticos: o primeiro é um poeta culto, preocupado com a materialidade do poema, a construção refinada de tecidos sonoros e pinturas verbais; o segundo é um autor que se esforça para injetar em sua poesia a coloquialidade, não raro de maneira artificial, afetada, e temas cotidianos que prescindem de reflexão crítica apurada. O primeiro é um poeta que dialoga com o cinema e as artes visuais (assim como a Claudia Roquette-Pinto de Saxífraga e Zona de sombra), apresenta um léxico erudito e metáforas rebuscadas; o segundo busca intelectualmente o despojamento, faz alusões a acontecimentos rotineiros e aos poetas com quem conversa. 

Da primeira fase de Azevedo, um poema que se destaca é As banhistas, publicado no livro de mesmo título, em que o autor utiliza um recurso da retórica barroca para descrever as personagens: a forma do retrato, em que imagens vegetais, minerais ou animais são evocadas para a construção metafórica de figuras humanas. Assim, temos aqui a “boca de tangerina”, a “máscara turmalina”, o “morango cuspido”, “ameixas sanguíneas”, um “sexo fugidio como uma lagartixa”, entre outras imagens barroquizantes, a la Góngora, que chamou de “pinheiro alado” as velas de um navio. Na quinta seção do poema, Azevedo descreve uma das jovens banhistas (tema da pintura de artistas como Cézanne e Renoir) como “súbita passista-tinguely: / os braços abertos em / mastros de caravela, leões marinhos / dançando ritmos agilíssimos”, até “condensar-se num parangolé de / brumas”, inserindo, no leque de referências plásticas, a inventiva performance visual de Hélio Oiticica. A colagem de signos de diferentes repertórios culturais, aliás, é um dos traços mais notórios do chamado neobarroco latino-americano, inaugurado, na década de 1940, por Lezama Lima – autor de um livro intitulado Enemigo rumor

A digital neobarroca é visível também no poema Nova passante, cujo título remete ao conhecido poema de Baudelaire: nas primeiras linhas desta composição, lemos: “sobre / esta pele branca / um calígrafo oriental / teria gravado sua escrita / luminosa”, tema erótico e metalinguístico caro a poetas neobarrocos como Nestor Perlongher e Osvaldo Lamborghini, que comparavam a escrita poética à tatuagem, à incisão e mesmo à mutilação, e o papel à pele humana. Esta metáfora, bastante conhecida, sobretudo entre os anos 1970-1990, está presente também num belo filme do cineasta inglês Peter Greenaway, intitulado O livro de cabeceira. No poema de Azevedo, a dimensão sadomasoquista aparece diluída, sem a mesma violência verbal de seus colegas argentinos, mas há grande riqueza imagética, lezamiana, em versos como “seus olhos são duas / machadinhas de jade escavando o / constelário noturno” e “o marfim em / alta-alvura de teu andar em / desmesura sobre uma passarela de / relâmpagos súbitos”. A elaboração formal na primeira fase da poesia de Azevedo privilegia a construção imagética, a fanopeia, sem descuidar, porém, da tessitura sonora, que atinge um grau de preciosismo no poema Na noite gris, em que o autor emprega rimas inusitadas, como gris / tigres / lábios-lis, em confronto com imagens brutais de “Lixas de unhas / mortas, roídas / até o sabugo” e “cegos, / engavetados, / carros se matam”. 

É explícita a maquinaria inventiva, que dialoga, por vezes, até com a métrica da redondilha, como nas 3 variações cabralinas, em que Azevedo traz de volta à baila a bailarina-labareda do poeta pernambucano, em construções engenhosas: “A dança veloz da língua / de uma labareda negra / a lamber no quarto escuro / sua própria labareda”. Poderíamos citar aqui outros poemas notáveis do autor, como A morte do mandarim, Hotel Inglaterra, No museu ou Dossier: la femme, em que Azevedo invoca, haroldiano e ultrabarroco, uma “escritura-ouro” e “minúsculas gotas de sentido” que são “relâmpadas, relâminas, estrelas: / e todo o resto é literatura” (concluindo o poema com a citação de Verlaine). A partir de Versos de circunstância, no entanto, o autor muda radicalmente sua dicção, referenciais literários, método crítico, escolhas e conceitos sobre poesia, adotando como bússola a vertente coloquial-cotidiana do Modernismo, em especial os poemas circunstanciais de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, a “Poesia Marginal” da década de 1970 e autores estrangeiros de estilo mais linear e acessível, como Nicanor Parra e Antonio Cisneros. 

A mudança é veemente: no poema Do livro das viagens, por exemplo, lemos: “Liliana Ponce não esqueceu o seu casaco no salão de chá / Liliana Ponce nem estava de casaco / (No Rio de Janeiro fazia um belíssimo dia de sol e dava / gosto olhar cada ferida exposta na pedra) / (...) Desse modo Liliana Ponce chegou a tempo de pegar o avião / Partiu para a Argentina”. A primeira pergunta que nos ocorre, lendo este poema, é: por qual motivo foi escrito? Apenas para registrar a presença da poeta argentina Liliana Ponce no Rio de Janeiro? E daí? O poema não apresenta nenhum conflito, nenhuma tensão, nenhum jogo, seja no campo estético, seja no referencial: as frases são simples e diretas, próximas à prosa narrativa, com enjambements, não há qualquer surpresa de imagem, sonora ou sintática. O recurso utilizado no poema, que de certo modo é estrutural, o da negatividade (ela não esqueceu o casaco, “não teve que voltar às pressas para a casa de chá”, “não veio nos alcançar à saída acenando” etc.), por si só,  não sustenta a narrativa poética, que deixa no leitor a sensação de algo inócuo. 

Em outro poema, intitulado Vento, lemos: “A manhã e alguns atletas desde cedo que estão dando voltas à Lagoa / Outros seguem para o Arpoador (onde o ar é de sal e insônia / e a beleza ri com uma flor de álcool entre os dentes)” possui o mesmo andamento rítmico da prosa, construído nas linhas longas, quase sem pausas. As citações de paisagens do Rio de Janeiro parecem decorativas, apenas para dizer: este é um poema sobre o Rio de Janeiro. A metáfora que surge após a breve descrição de cenário (“uma flor de álcool entre os dentes”) cria um certo atrito com as linhas anteriores, que logo se atenua, com novas linhas prosaicas, que terminam com estas linhas: “Dos cabelos desgrenhados do meu filho / se desprega, ao vento, como um / sorriso, como um relâmpago, / um pensamento triste”, em que há uma sequência de comparações, que conduzem a um intentado (e não bem realizado) clímax. Novamente, surge a pergunta: por qual motivo este poema foi escrito? 

A banalidade prosaica, praticada na segunda fase de Azevedo e também por alguns poetas próximos a ele, como Augusto Massi, almeja esvaziar-se da anterior arquitetura barroca, das dissonâncias, das quebras sintáticas,  para aproximar-se da coloquialidade, do cenário “ao rés do chão”, mas o que é mostrado nessa poesia? As tensões sociais estão ausentes – não encontramos na poesia de Azevedo a denúncia do racismo, da misoginia, da homofobia, nem os trágicos contrastes do Rio de Janeiro, convertido em mera paisagem de cartão-postal. O diálogo pretendido com Drummond e Bandeira fracassa porque, nestes poetas, o cotidiano não se resume a beber um copo de leite na padaria, ler o jornal, atravessar a Tijuca ou andar de bicicleta em Copacabana; há outro estofo, como em Rosa do povo, onde CDA, “preso à minha classe e a algumas roupas”, indaga: “posso, sem armas, revoltar-me?”. Há uma tensão, um conflito, na poesia do autor mineiro, que é ao mesmo tempo psicológica, histórica (ditadura de Getúlio Vargas, nazifascismo, II Guerra Mundial) e semântica. A orquídea que nasce no meio da rua, não nasce no vácuo, mas “em país bloqueado, / enlace de noite / raiz e minério”, e sua existência “antieucliadiana” é, em si mesma, uma reação.  

O realismo crítico está presente mesmo em peças circunstanciais do poeta de Itabira, como Morte do leiteiro, que tematiza a luta de classes (sim, a luta de classes!). Já nos Versos de circunstância de Azevedo, e em seu monótono Monodrama, não há conflitos, mas uma permanente zona de conforto, de quem observa o mundo à distância e programa, deliberadamente, uma fala mais “suave”, mansa e ordeira, sem atrever-se a realmente dizer algo consistente. O primeiro Azevedo, da poesia barroquizante, manifestou certa ousadia, ao menos, no campo retórico, com as suas palavras peregrinas; o segundo Azevedo, da poesia de circunstância, logrou conciliar a ausência de profundidade na forma e no conteúdo, atingindo, de certa maneira, um grau zero da escritura.


[1] Oito anos após a publicação de Sublunar, sairia novo livro de Carlito Azevedo, intitulado Monodrama (2009).

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