Carlito Azevedo publicou em
Se colocarmos as duas fases do poeta lado a lado, seguindo
o método poundiano de crítica via comparação de textos, teremos a impressão de
que se trata de dois autores completamente diferentes, no repertório, conceitos
e resultados estéticos: o primeiro é um poeta culto, preocupado com a
materialidade do poema, a construção refinada de tecidos sonoros e pinturas
verbais; o segundo é um autor que se esforça para injetar em sua poesia a
coloquialidade, não raro de maneira artificial, afetada, e temas cotidianos que
prescindem de reflexão crítica apurada. O primeiro é um poeta que dialoga com o
cinema e as artes visuais (assim como a Claudia Roquette-Pinto de Saxífraga e Zona de sombra),
apresenta um léxico erudito e metáforas rebuscadas; o segundo busca
intelectualmente o despojamento, faz alusões a acontecimentos rotineiros e aos
poetas com quem conversa.
Da primeira fase de Azevedo, um poema que se destaca
é As banhistas, publicado no livro de
mesmo título, em que o autor utiliza um recurso da retórica barroca para
descrever as personagens: a forma do retrato,
em que imagens vegetais, minerais ou animais são evocadas para a construção
metafórica de figuras humanas. Assim, temos aqui a “boca de tangerina”, a
“máscara turmalina”, o “morango cuspido”, “ameixas sanguíneas”, um “sexo
fugidio como uma lagartixa”, entre outras imagens barroquizantes, a la Góngora , que chamou de
“pinheiro alado” as velas de um navio. Na quinta seção do poema, Azevedo
descreve uma das jovens banhistas (tema da pintura de artistas como Cézanne e
Renoir) como “súbita passista-tinguely: / os braços abertos em / mastros de
caravela, leões marinhos / dançando ritmos agilíssimos”, até “condensar-se num
parangolé de / brumas”, inserindo, no leque de referências plásticas, a
inventiva performance visual de Hélio Oiticica. A colagem de signos de diferentes
repertórios culturais, aliás, é um dos traços mais notórios do chamado
neobarroco latino-americano, inaugurado, na década de 1940, por Lezama Lima –
autor de um livro intitulado Enemigo
rumor.
A digital neobarroca é visível também no poema Nova passante, cujo título remete ao conhecido poema de Baudelaire:
nas primeiras linhas desta composição, lemos: “sobre / esta pele branca / um
calígrafo oriental / teria gravado sua escrita / luminosa”, tema erótico e
metalinguístico caro a poetas neobarrocos como Nestor Perlongher e Osvaldo
Lamborghini, que comparavam a escrita poética à tatuagem, à incisão e mesmo à
mutilação, e o papel à pele humana. Esta metáfora, bastante conhecida,
sobretudo entre os anos 1970-1990, está presente também num belo filme do
cineasta inglês Peter Greenaway, intitulado O
livro de cabeceira. No poema de Azevedo, a dimensão sadomasoquista aparece
diluída, sem a mesma violência verbal de seus colegas argentinos, mas há grande
riqueza imagética, lezamiana, em versos como “seus olhos são duas / machadinhas
de jade escavando o / constelário noturno” e “o marfim em / alta-alvura de teu
andar em / desmesura sobre uma passarela de / relâmpagos súbitos”. A elaboração
formal na primeira fase da poesia de Azevedo privilegia a construção imagética,
a fanopeia, sem descuidar, porém, da
tessitura sonora, que atinge um grau de preciosismo no poema Na noite gris, em que o autor emprega
rimas inusitadas, como gris / tigres /
lábios-lis, em confronto com imagens brutais de “Lixas de unhas / mortas,
roídas / até o sabugo” e “cegos, / engavetados, / carros se matam”.
É explícita
a maquinaria inventiva, que dialoga, por vezes, até com a métrica da
redondilha, como nas 3 variações
cabralinas, em que
Azevedo traz de volta à baila a bailarina-labareda do poeta
pernambucano, em construções engenhosas: “A dança veloz da língua / de uma
labareda negra / a lamber no quarto escuro / sua própria labareda”. Poderíamos
citar aqui outros poemas notáveis do autor, como A morte do mandarim, Hotel Inglaterra, No museu ou Dossier: la femme, em que
Azevedo invoca, haroldiano e ultrabarroco, uma
“escritura-ouro” e “minúsculas gotas de sentido” que são “relâmpadas,
relâminas, estrelas: / e todo o resto é literatura” (concluindo o poema com a
citação de Verlaine). A partir de Versos de circunstância, no entanto, o autor muda radicalmente sua
dicção, referenciais literários, método crítico, escolhas e conceitos sobre
poesia, adotando como bússola a vertente coloquial-cotidiana do Modernismo, em
especial os poemas circunstanciais de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de
Andrade, a “Poesia Marginal” da década de 1970 e autores estrangeiros de estilo
mais linear e acessível, como Nicanor Parra e Antonio Cisneros.
A mudança é veemente: no poema Do livro das viagens, por exemplo,
lemos: “Liliana Ponce não esqueceu o seu casaco no salão de chá / Liliana Ponce
nem estava de casaco / (No Rio de Janeiro fazia um belíssimo dia de sol e dava
/ gosto olhar cada ferida exposta na pedra) / (...) Desse modo Liliana Ponce
chegou a tempo de pegar o avião / Partiu para a Argentina”. A primeira pergunta
que nos ocorre, lendo este poema, é: por qual motivo foi escrito? Apenas para
registrar a presença da poeta argentina Liliana Ponce no Rio de Janeiro? E daí?
O poema não apresenta nenhum conflito, nenhuma tensão, nenhum jogo, seja no
campo estético, seja no referencial: as frases são simples e diretas, próximas
à prosa narrativa, com enjambements,
não há qualquer surpresa de imagem, sonora ou sintática. O recurso utilizado no
poema, que de certo modo é estrutural, o da negatividade (ela não esqueceu o casaco, “não teve que voltar às pressas para a
casa de chá”, “não veio nos alcançar
à saída acenando” etc.), por si só, não
sustenta a narrativa poética, que deixa no leitor a sensação de algo inócuo.
Em
outro poema, intitulado Vento, lemos:
“A manhã e alguns atletas desde cedo que estão dando voltas à Lagoa / Outros
seguem para o Arpoador (onde o ar é de sal e insônia / e a beleza ri com uma
flor de álcool entre os dentes)” possui o mesmo andamento rítmico da prosa,
construído nas linhas longas, quase sem pausas. As citações de paisagens do Rio
de Janeiro parecem decorativas, apenas para dizer: este é um poema sobre o Rio
de Janeiro. A metáfora que surge após a breve descrição de cenário (“uma flor
de álcool entre os dentes”) cria um certo atrito com as linhas anteriores, que
logo se atenua, com novas linhas prosaicas, que terminam com estas linhas: “Dos
cabelos desgrenhados do meu filho / se desprega, ao vento, como um / sorriso,
como um relâmpago, / um pensamento triste”, em que há uma sequência de
comparações, que conduzem a um intentado (e não bem realizado) clímax.
Novamente, surge a pergunta: por qual motivo este poema foi escrito?
A
banalidade prosaica, praticada na segunda fase de Azevedo e também por alguns
poetas próximos a ele, como Augusto Massi, almeja esvaziar-se da anterior
arquitetura barroca, das dissonâncias, das quebras sintáticas, para aproximar-se da coloquialidade, do
cenário “ao rés do chão”, mas o que é mostrado nessa poesia? As tensões sociais
estão ausentes – não encontramos na poesia de Azevedo a denúncia do racismo, da
misoginia, da homofobia, nem os trágicos contrastes do Rio de Janeiro,
convertido em mera paisagem de cartão-postal. O diálogo pretendido com Drummond
e Bandeira fracassa porque, nestes poetas, o cotidiano não se resume a beber um
copo de leite na padaria, ler o jornal, atravessar a Tijuca ou andar de
bicicleta em Copacabana; há outro estofo, como em Rosa do povo, onde CDA, “preso à minha classe e a algumas roupas”,
indaga: “posso, sem armas, revoltar-me?”. Há uma tensão, um conflito, na poesia
do autor mineiro, que é ao mesmo tempo psicológica, histórica (ditadura de
Getúlio Vargas, nazifascismo, II Guerra Mundial) e semântica. A orquídea que
nasce no meio da rua, não nasce no vácuo, mas “em país bloqueado, / enlace de
noite / raiz e minério”, e sua existência “antieucliadiana” é, em si mesma, uma
reação.
O realismo crítico está presente mesmo em
peças circunstanciais do poeta de Itabira, como Morte do leiteiro, que tematiza a luta de classes (sim, a luta de
classes!). Já nos Versos de circunstância
de Azevedo, e em seu monótono Monodrama,
não há conflitos, mas uma permanente zona de conforto, de quem observa o mundo
à distância e programa, deliberadamente, uma fala mais “suave”, mansa e
ordeira, sem atrever-se a realmente dizer
algo consistente. O primeiro Azevedo, da poesia barroquizante, manifestou certa
ousadia, ao menos, no campo retórico, com as suas palavras peregrinas; o
segundo Azevedo, da poesia de circunstância, logrou conciliar a ausência de
profundidade na forma e no conteúdo, atingindo, de certa maneira, um grau zero
da escritura.
[1] Oito anos após a publicação de Sublunar, sairia novo
livro de Carlito Azevedo, intitulado Monodrama (2009).
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