segunda-feira, 13 de julho de 2015

PARTITURAS DO INSÓLITO: A POESIA DE RICARDO ALEIXO


Ricardo Aleixo realiza sua pesquisa poética em diferentes campos, como a etnopoesia, a performance, experimentos em poesia visual e sonora, objetos tridimensionais, videoarte, canções, com raro domínio técnico e sensibilidade, unindo a tradição da poesia de alto repertório aos recursos tecnológicos e aos territórios simbólicos da cultura popular. Sua poesia em verso, publicada em cinco livros – Festim (1992), A roda do mundo (1996, em parceria com Edmilson de Almeida Pereira), Trívio (2001), Máquina zero (2003) e Modelos vivos (2010) revela um timbre seco, áspero, que comunica “uma percepção crítica da realidade, na qual a forma severa mimetiza de modo mordaz a escassez de um mundo rude, pobre, elementar”, conforme escreveu o crítico Manuel da Costa Pinto[1].

Em seu livro de estreia, Festim, cujo subtítulo é um desconcerto de música plástica, Ricardo Aleixo apresenta um conjunto de poemas breves, compostos em diferentes tipologias de letras, espacializados com recursos de diagramação que denunciam a ressonância da Poesia Concreta. A dicção de revolta, porém, já é bastante pessoal e prenuncia futuras composições do poeta. Assim, por exemplo, nesta peça sem título, composta numa fonte em que as letras aparecem inclinadas, sugerindo uma escrita líquida: “neste código nesta culpa neste olho nesta cólera / neste dardo nesta forma neste alvo nes / ta alma nesta danação neste infernocéu...”. O poema resume, de maneira exemplar, o duplo compromisso do autor, com a arte e o mundo, já em sua semântica: ao lado de termos que remetem à “poesia pura” – código, forma, lira, página – estão alinhados outros termos, indicativos da situação de exclusão social em que ainda vivem amplas parcelas da população brasileira: culpa, cólera, danação, delito, lâmina, inferno. Combinados a esses dois campos semânticos, como se fosse uma camada intermediária, lemos ainda: ócio, ópio, delírio, farsa, indicando tanto a situação da classe hegemônica quanto a dos poetas indiferentes às desigualdades sociais. É um violento poema de protesto, mas construído com rara inteligência combinatória, que evita as facilidades discursivas da lírica social.

Em outra peça sem título, de apenas duas linhas, compostas numa fonte similar ao da escrita gótica, Ricardo Aleixo alterna o brado ríspido com a fina ironia, porém, com o mesmo espírito crítico: “fogo na alma O inferno também / é para quem pode”, que recorda as paródias e paradoxos do polaco mulato Paulo Leminski. A fluência melódica, que caracteriza uma das vertentes da poesia do autor mineiro, é bem representada, neste volume de estreia, por outra composição: “incontáveis linhas / como que dispersas / impensáveis línguas / como que dos persas / cruzam-se no infinito: / ou tornam-se linguagem / ou deixam o dito / por não dito”.

Emblemática da primeira fase da poesia de Ricardo Aleixo, a peça explora de maneira feliz as aliterações e assonâncias, concluindo o discurso poético com um dito popular que dessacraliza a “pureza” da linguagem, revitalizando-a pela contaminação de outros repertórios linguísticos (procedimento que verificamos em muitos de seus companheiros de geração, como Rodrigo Garcia Lopes, Ademir Assunção, Ricardo Corona e Maurício Arruda Mendonça). A roda do mundo (1996), segundo livro publicado pelo autor, tem uma estratégia diferente de Festim: em vez da pesquisa visual, o poeta investe em outra seara, a dos cantos rituais dedicados aos orixás das religiões de matriz africana, ou orikis, tema estudado pelo poeta e antropólogo baiano Antonio Risério do livro Oriki orixá, publicado no mesmo ano. Mistura de poesia, canto, sortilégio e prece devocional, sem formas métricas ou rímicas fixas, os orikis tradicionais, compostos no idioma iorubá e cantados até hoje nos terreiros de umbanda e candomblé, são ricos em trocadilhos, paronomásias e outros jogos semânticos. Seu recurso mais característico é o epíteto, também frequente na poesia épica grega, indiana e escandinava. Assim, Xangô é chamado de “alafim de Oió” (soberano do reino de Oió), Ogum é “Oniré” (rei de Irê), entre outros apelidos poéticos, ou “qualidades”, que destacam as características de cada orixá.

Ricardo Aleixo, dialogando com esse imaginário mitológico e manancial poético, criou um ciclo de dez orikis, que se destacam pela fluência melódica: são poemas para serem lidos em livro, mas poderiam, facilmente, ser cantados. No oriki dedicado a Iemanjá (Mamãe grande), por exemplo, Ricardo Aleixo consegue, pela repetição de contínua de três frases, um efeito quase hipnótico, como na recitação de um mantra: “todas / as águas do mundo são / Dela, fluem / refluem nos ritmos / Dela, tudo que vem, / que revém. todas / as águas / do mundo são / Dela. / fluem refluem / nos ritmos Dela...”. A repetição das mesmas frases sonoras, por outro lado, mimetiza, de forma icônica, o próprio movimento das águas do mar, elemento regido por Iemanjá, Senhora das Águas. Outra peça notável desse conjunto é o oriki de Xangô, onde lemos: “O que / lança pedras / de raio / contra a casa / do curioso / e congela / o olhar do / mentiroso. Leopardo, / marido de Oiá. / Leopardo, / filho de Iemanjá. / Xangô cozinha / o inhame / com o vento / que sai / de suas ventas”, versos concisos e ferinos que recriam a virulência dos textos sonoros iorubás, tal como apresentados a nós por um dos maiores especialista no assunto, Pierre Verger, autor do clássico livro Os orixás.

Embora as “travessuras” dos orixás nada tenham de incomum – fazem parte dos relatos mitológicos originais das nações africanas, em particular dos grupos ketu, bantu, nagô e djedje, e encontradas também em outras religiões e mitologias, como os “passatempos” de Krishna, descritos no Srimad Bhagavatam –, é impossível, para o leitor ocidental, não pensar na tradição coloquial-irônica e erótico-satírica das cantigas de escárnio e mal-dizer até Gregório de Matos, Bocage, Glauco Mattoso e outros autores “desbocados”. Em um oriki de Exu traduzido por Antonio Risério, por exemplo, lemos: “Exu não deixa a rainha cobrir o corpo nu. (...) / Surra de chicote a mulher do rei. / Deixa o chorão chorar / Vê gente se batendo e não aparta. (...) / Agbô vê quando botam pimenta / Na buceta de sua sogra. (...) / Atirando uma pedra hoje, / Mata um pássaro ontem”. No oriki de Exu escrito por Ricardo Aleixo, predominam o paradoxo e a hipérbole, recorrentes também em outras modalidades de poesia popular, como os romances de cordel: “Cabelo pontudo /como um falo. / Dono dos oitocentos / porretes. (...) / Bará chega fungando. / O povo pensa / que é o trem / partindo”.

Após a experiência mitopoética de A roda do mundo, Ricardo Aleixo retoma a pesquisa visual iniciada em Festim no seu terceiro livro, Trívio, publicado em 2001. No posfácio que escreveu para essa nova coleção de poemas, Sebastião Uchoa Leite escreve: “a poética de Ricardo Aleixo é uma poética de interstícios, interconexões, ou, como ele o dia, um ‘estático / teatro de sombras // matéria de / que é / feita a / insônia’. (...) Como se disse antes, tudo está imbricado: lirismo, citações cultas, referências míticas, engajamentos (no poema ‘Brancos’, ‘brancos’ = machos = adultos = cristãos = ricos = ‘sãos’, tudo aludindo à expressão corriqueira: ‘eles que são brancos que se entendam’)”. Trívio (palavra que significa a divisão inferior das artes liberais na Idade Média: gramática, retórica, dialética, mas também a reunião de três caminhos) é um vasto palimpsesto onde encontramos desde os índices cultos, como a epígrafe de Lezama Lima, poemas que dialogam com a passante de Baudelaire, a lírica amorosa de Goethe, a pintura de Caravaggio e a música de John Coltrane até peças de surpreendente leveza, que estão entre as mais notáveis do volume, como Loa da menina deusa: “já perto do poente / o cabelo ornado / com invisíveis fios / de ouro / a menina uma / putinha da areia uma / menina deusa / qualquer / inventa a um / simples meneio / dos dedos / um outro sol / e some / rápida / reconvertida em água”, peça que combina o registro da imagem de uma banhista adolescente com a referência ao mito da sereia e, talvez, a Iemanjá.

Em outra composição de versos curtos encadeados, o poeta mineiro presta homenagem a Bispo do Rosário, artista naif, dadaísta talvez sem sabê-lo, triplamente excluído como negro, pobre e esquizofrênico: “quem fez e refez / cem vezes o / caminho do mundo / até antes / cem vezes na / cabeça o longo / trecho entre o / mar e o / céu / quem re fez o / caminho da perda / com seu manto / de / ver deusfilho”. Neste poema, assim como em outros do volume, podemos considerar que o texto inteiro é um único verso, com sintaxe completa, dividido em linhas breves, que subvertem a linearidade e definem o ritmo da leitura.

O mesmo princípio vamos encontrar na peça Para uma eventual conversa sobre poesia com o fiscal de rendas (cujo título remete a Maiakovski), com a diferença de que, neste caso, em lugar do verso curto, temos uma sequência de blocos de texto que dissolvem os limites entre prosa e poesia, em linhas espacializadas, sem pontuação e com ritmo anafórico: “minha própria língua meu / próprio limo meus próprios /  ombros minha própria sombra / minhas próprias vértebras / minhas próprias pálpebras (...) / meu próprio sinal de nascença minha / própria calva meu próprio / cavalo minha própria idade: / minhas propriedades”. Poema de ironia corrosiva, acentua um dos temas frequentes na poesia de Ricardo Aleixo: a situação desconfortável do poeta numa sociedade regida pela lógica do mercado e da mídia.

Em outros poemas de Trívio, encontraremos diferentes estruturas comunicativas que convidam o leitor a descobrir rotas de leitura distintas do padrão ocidental, que segue da esquerda para a direita, em linhas horizontais. Nas peças de concepção visual mais acentuada, como a Canção noturna do fim de Peixes, Passagens, Nota, o leitor participa da construção de sentido buscando outras formas de leitura, da direita para a esquerda, na vertical, em ziguezague e em outras rotas inusitadas, à maneira do labirinto visual do barroco português e da obra aberta de Umberto Eco.

Máquina zero, publicado em 2003, Ricardo Aleixo radicaliza a vertente coloquial irônico-satírica já presente nos títulos anteriores. No poema Paupéria revisitada, por exemplo, lemos: “Poetas, como os deuses, / vendem quando dão. / Poetas, não. / Policiais e pistoleiros / vendem segurança / (isto é, vingança ou proteção). Poetas se gabam do limbo, do veto / do censor, do exílio, da vaia / e do dinheiro não)”. O tema se amplia, nas peças seguintes, num amplo painel crítico da “república das letras”, em que a língua ferina do autor não poupa leitores, editores, críticos e outros poetas: “Se praticais sonetos – anacrônico. / Se pretendeis chocar – não paga o custo. / Se recriais Homero – macarrônico. / Se experimentais – cópia do Augusto”. A própria cidade natal do poeta, Belo Horizonte – ou Velhorizonte, no dizer irreverente de alguns de seus moradores – não escapa da farpa e da virulência: “Se terra tem cu / Belo Horizonte é o cu das terras”, / Averno oculto / entre as serras, / onde o próprio Belzebu // por certo, não escaparia / ao riso dissimulado, / ao insulto / disfarçado / de elogio, à vilania”, que recorda o brado cáustico de Gregório de Matos.

Novos modelos, livro mais recente de Ricardo Aleixo, publicado em 2010, apresenta surpresas já no projeto gráfico – desde a bela capa, que reproduz a “fotografia digital (que assume diferentes formas) de objeto construído com linhas de costura de diversas cores”, como esclarece o autor em nota no final do volume, até a “releitura, com verniz aplicado, de poema-lema produzido originalmente como um adesivo” nas “orelhas” do livro (“Tem que ter palavra para ser humano”, de evidente ambiguidade referencial). A visualidade está presente em poemas como 11 passos para Merce Cunningham, composto de uma série de desenhos abstratos, ao modo de variações, feitos com tinta acrílica sobre papel fotográfico.

O desfazimento das palavras – e portanto do sentido – acontece também no díptico Real / irreal, em que uma única frase – “o real realiza o irreal” é repetida em sequências que deformam palavras, sílabas e letras, até convertê-las em manchas ou ruídos gráficos. Em outras composições desta seção do livro, o autor apresenta novos labirintos-enigmas, como Babeladormecida, Einstein remix e Solo, que exploram possibilidades combinatórias e rotas de leitura – recursos evidentes também no poema em prosa Cabeça de serpente (“a serpente morde a própria cauda. a serpente pensa que morde a própria cauda. a serpente apenas pensa que morde a própria cauda. a serpente morde a própria cauda que pensa.”) e no labirinto de versos que constroi nos poemas Tempo e Errata, em que as mesmas frases e palavras são distribuídas, nas duas peças, em diferentes sequências e combinações.

Um ano entre os humanos, nome de uma performance poético-musical apresentada por Ricardo Aleixo, é também o título de um interessante poema em prosa incluído no volume, construído por uma sequência de perguntas irônico-incisivas que, é claro, prescindem de respostas: “Você beberia sangue humano? A filha da Madonna é humana? (...) A Barbie é humana?  Você acreditaria se lhe dissessem que Michael Jackson, quando bebê, tinha feições humanas? (...) Charles Darwin era humano? (...) Prisioneiros iraquianos arrastados por coleiras são humanos? (...) Você é humano?”.

Notáveis também são os autorretratos do poeta, distribuídos ao longo do volume, elaborados com câmera digital e produzidos em seu “laboratório-casa” – montagens inusitadas de letras, luzes, perfis e sombras, que nos fazem pensar nos artistas da vanguarda russa da década de 1920, como Ródchenko. Todos estes poemas – e o livro não se resume a esse breve elenco de inventos – situam Ricardo Aleixo não apenas entre os poetas identificados com a poesia visual e o experimentalismo, mas também no campo do neobarroco, entendido aqui como a ampla teia de autores que, desde a década de 1970 até os dias atuais – pensemos em Severo Sarduy, José Kozer, Nestor Perlongher, Coral Bracho, Victor Sosa, Reynaldo Jiménez – reelaboraram influências da poesia barroca do Século de Ouro, à luz da tradição da modernidade. Todos os rótulos, é evidente, são úteis para a compreensão e discussão de aspectos temáticos ou formais de um autor ou geração literária, sem a pretensão de esgotar as chaves interpretativas. No caso de um grande poeta, como é o caso de Ricardo Aleixo, os rótulos colaboram para iluminar, parcialmente, momentos de transformação de uma escrita camaleônica, rara e necessária ao nosso tempo.





[1] Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo: Publifolha, 2006, p. 20.

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