Ricardo Aleixo realiza sua
pesquisa poética em diferentes campos, como a etnopoesia, a performance, experimentos em poesia
visual e sonora, objetos tridimensionais, videoarte, canções, com raro domínio
técnico e sensibilidade, unindo a tradição da poesia de alto repertório aos
recursos tecnológicos e aos territórios simbólicos da cultura popular. Sua
poesia em verso, publicada em cinco livros – Festim (1992), A roda do mundo (1996, em parceria com Edmilson
de Almeida Pereira), Trívio (2001), Máquina zero (2003) e Modelos vivos (2010) revela um timbre
seco, áspero, que comunica “uma percepção crítica da realidade, na qual a forma
severa mimetiza de modo mordaz a escassez de um mundo rude, pobre, elementar”,
conforme escreveu o crítico Manuel da Costa Pinto[1].
Em seu livro de estreia, Festim, cujo subtítulo é um desconcerto de música plástica,
Ricardo Aleixo apresenta um conjunto de poemas breves, compostos em diferentes
tipologias de letras, espacializados com recursos de diagramação que denunciam
a ressonância da Poesia Concreta. A dicção de revolta, porém, já é bastante
pessoal e prenuncia futuras composições do poeta. Assim, por exemplo, nesta
peça sem título, composta numa fonte em que as letras aparecem inclinadas,
sugerindo uma escrita líquida: “neste código nesta culpa neste olho nesta
cólera / neste dardo nesta forma neste alvo nes / ta alma nesta danação neste
infernocéu...”. O poema resume, de maneira exemplar, o duplo compromisso do
autor, com a arte e o mundo, já em sua semântica: ao lado de termos que remetem
à “poesia pura” – código, forma, lira,
página – estão alinhados outros termos, indicativos da situação de exclusão
social em que ainda vivem amplas parcelas da população brasileira: culpa, cólera, danação, delito, lâmina,
inferno. Combinados a esses dois campos semânticos, como se fosse uma
camada intermediária, lemos ainda: ócio,
ópio, delírio, farsa, indicando
tanto a situação da classe hegemônica quanto a dos poetas indiferentes às
desigualdades sociais. É um violento poema de protesto, mas construído com rara
inteligência combinatória, que evita as facilidades discursivas da lírica
social.
Em outra peça sem título, de
apenas duas linhas, compostas numa fonte similar ao da escrita gótica, Ricardo
Aleixo alterna o brado ríspido com a fina ironia, porém, com o mesmo espírito
crítico: “fogo na alma O inferno também / é para quem pode”, que recorda as
paródias e paradoxos do polaco mulato Paulo Leminski. A fluência melódica, que
caracteriza uma das vertentes da poesia do autor mineiro, é bem representada,
neste volume de estreia, por outra composição: “incontáveis linhas / como que
dispersas / impensáveis línguas / como que dos persas / cruzam-se no infinito:
/ ou tornam-se linguagem / ou deixam o dito / por não dito”.
Emblemática da primeira fase da
poesia de Ricardo Aleixo, a peça explora de maneira feliz as aliterações e
assonâncias, concluindo o discurso poético com um dito popular que dessacraliza
a “pureza” da linguagem, revitalizando-a pela contaminação de outros
repertórios linguísticos (procedimento que verificamos em muitos de seus
companheiros de geração, como Rodrigo Garcia Lopes, Ademir Assunção, Ricardo
Corona e Maurício Arruda Mendonça). A
roda do mundo (1996), segundo livro publicado pelo autor, tem uma
estratégia diferente de Festim: em
vez da pesquisa visual, o poeta investe em outra seara, a dos cantos rituais
dedicados aos orixás das religiões de matriz africana, ou orikis, tema estudado pelo poeta e antropólogo baiano Antonio
Risério do livro Oriki orixá,
publicado no mesmo ano. Mistura de poesia, canto, sortilégio e prece
devocional, sem formas métricas ou rímicas fixas, os orikis tradicionais, compostos no idioma iorubá e cantados até hoje
nos terreiros de umbanda e candomblé, são ricos em trocadilhos, paronomásias e
outros jogos semânticos. Seu recurso mais característico é o epíteto, também
frequente na poesia épica grega, indiana e escandinava. Assim, Xangô é chamado
de “alafim de Oió” (soberano do reino de Oió), Ogum é “Oniré” (rei de Irê),
entre outros apelidos poéticos, ou “qualidades”, que destacam as
características de cada orixá.
Ricardo Aleixo, dialogando com
esse imaginário mitológico e manancial poético, criou um ciclo de dez orikis, que se destacam pela fluência
melódica: são poemas para serem lidos em livro, mas poderiam, facilmente, ser
cantados. No oriki dedicado a Iemanjá
(Mamãe grande), por exemplo, Ricardo
Aleixo consegue, pela repetição de contínua de três frases, um efeito quase hipnótico,
como na recitação de um mantra: “todas / as águas do mundo são / Dela, fluem /
refluem nos ritmos / Dela, tudo que vem, / que revém. todas / as águas / do
mundo são / Dela. / fluem refluem / nos ritmos Dela...”. A repetição das mesmas
frases sonoras, por outro lado, mimetiza, de forma icônica, o próprio movimento
das águas do mar, elemento regido por Iemanjá, Senhora das Águas. Outra peça
notável desse conjunto é o oriki de
Xangô, onde lemos: “O que / lança pedras / de raio / contra a casa / do curioso
/ e congela / o olhar do / mentiroso. Leopardo, / marido de Oiá. / Leopardo, /
filho de Iemanjá. / Xangô cozinha / o inhame / com o vento / que sai / de suas
ventas”, versos concisos e ferinos que recriam a virulência dos textos sonoros
iorubás, tal como apresentados a nós por um dos maiores especialista no
assunto, Pierre Verger, autor do clássico livro Os orixás.
Embora as “travessuras” dos
orixás nada tenham de incomum – fazem parte dos relatos mitológicos originais
das nações africanas, em particular dos grupos ketu, bantu, nagô e djedje, e
encontradas também em outras religiões e mitologias, como os “passatempos” de
Krishna, descritos no Srimad Bhagavatam –,
é impossível, para o leitor ocidental, não pensar na tradição coloquial-irônica
e erótico-satírica das cantigas de escárnio e mal-dizer até Gregório de Matos,
Bocage, Glauco Mattoso e outros autores “desbocados”. Em um oriki de Exu traduzido por Antonio
Risério, por exemplo, lemos: “Exu não deixa a rainha cobrir o corpo nu. (...) /
Surra de chicote a mulher do rei. / Deixa o chorão chorar / Vê gente se batendo
e não aparta. (...) / Agbô vê quando botam pimenta / Na buceta de sua sogra.
(...) / Atirando uma pedra hoje, / Mata um pássaro ontem”. No oriki de Exu escrito por Ricardo Aleixo,
predominam o paradoxo e a hipérbole, recorrentes também em outras modalidades
de poesia popular, como os romances de cordel: “Cabelo pontudo /como um falo. /
Dono dos oitocentos / porretes. (...) / Bará chega fungando. / O povo pensa /
que é o trem / partindo”.
Após a experiência mitopoética de
A roda do mundo, Ricardo Aleixo
retoma a pesquisa visual iniciada em Festim
no seu terceiro livro, Trívio,
publicado em 2001. No posfácio que escreveu para essa nova coleção de poemas,
Sebastião Uchoa Leite escreve: “a poética de Ricardo Aleixo é uma poética de
interstícios, interconexões, ou, como ele o dia, um ‘estático / teatro de
sombras // matéria de / que é / feita a / insônia’. (...) Como se disse antes,
tudo está imbricado: lirismo, citações cultas, referências míticas,
engajamentos (no poema ‘Brancos’, ‘brancos’ = machos = adultos = cristãos =
ricos = ‘sãos’, tudo aludindo à expressão corriqueira: ‘eles que são brancos
que se entendam’)”. Trívio (palavra
que significa a divisão inferior das artes liberais na Idade Média: gramática,
retórica, dialética, mas também a reunião de três caminhos) é um vasto
palimpsesto onde encontramos desde os índices cultos, como a epígrafe de Lezama
Lima, poemas que dialogam com a passante de Baudelaire, a lírica amorosa de
Goethe, a pintura de Caravaggio e a música de John Coltrane até peças de
surpreendente leveza, que estão entre as mais notáveis do volume, como Loa da menina deusa: “já perto do poente
/ o cabelo ornado / com invisíveis fios / de ouro / a menina uma / putinha da
areia uma / menina deusa / qualquer / inventa a um / simples meneio / dos dedos
/ um outro sol / e some / rápida / reconvertida em água”, peça que combina o
registro da imagem de uma banhista adolescente com a referência ao mito da
sereia e, talvez, a Iemanjá.
Em outra composição de versos
curtos encadeados, o poeta mineiro presta homenagem a Bispo do Rosário, artista
naif, dadaísta talvez sem sabê-lo,
triplamente excluído como negro, pobre e esquizofrênico: “quem fez e refez /
cem vezes o / caminho do mundo / até antes / cem vezes na / cabeça o longo /
trecho entre o / mar e o / céu / quem re fez o / caminho da perda / com seu
manto / de / ver deusfilho”. Neste poema, assim como em outros do volume,
podemos considerar que o texto inteiro é um único verso, com sintaxe completa,
dividido em linhas breves, que subvertem a linearidade e definem o ritmo da
leitura.
O mesmo princípio vamos encontrar
na peça Para uma eventual conversa sobre
poesia com o fiscal de rendas
(cujo título remete a Maiakovski), com a diferença de que, neste caso, em lugar
do verso curto, temos uma sequência de blocos de texto que dissolvem os limites
entre prosa e poesia, em linhas espacializadas, sem pontuação e com ritmo
anafórico: “minha própria língua meu / próprio limo meus próprios / ombros minha própria sombra / minhas próprias
vértebras / minhas próprias pálpebras (...) / meu próprio sinal de nascença
minha / própria calva meu próprio / cavalo minha própria idade: / minhas
propriedades”. Poema de ironia corrosiva, acentua um dos temas frequentes na
poesia de Ricardo Aleixo: a situação desconfortável do poeta numa sociedade
regida pela lógica do mercado e da mídia.
Em outros poemas de Trívio, encontraremos diferentes
estruturas comunicativas que convidam o leitor a descobrir rotas de leitura
distintas do padrão ocidental, que segue da esquerda para a direita, em linhas
horizontais. Nas peças de concepção visual mais acentuada, como a Canção noturna do fim de Peixes, Passagens,
Nota, o leitor participa da construção de sentido buscando outras formas de
leitura, da direita para a esquerda, na vertical, em ziguezague e em outras
rotas inusitadas, à maneira do labirinto visual do barroco português e da obra aberta de Umberto Eco.
Máquina zero, publicado em 2003, Ricardo Aleixo radicaliza a
vertente coloquial irônico-satírica já presente nos títulos anteriores. No
poema Paupéria revisitada, por exemplo, lemos: “Poetas, como os deuses, / vendem quando dão. / Poetas, não. /
Policiais e pistoleiros / vendem segurança / (isto é, vingança ou proteção). Poetas
se gabam do limbo, do veto / do censor, do exílio, da vaia / e do dinheiro
não)”. O tema se amplia, nas peças seguintes, num amplo painel crítico da
“república das letras”, em que a língua ferina do autor não poupa leitores,
editores, críticos e outros poetas: “Se praticais sonetos – anacrônico. / Se
pretendeis chocar – não paga o custo. / Se recriais Homero – macarrônico. / Se
experimentais – cópia do Augusto”. A própria cidade natal do poeta, Belo
Horizonte – ou Velhorizonte, no dizer irreverente de alguns de seus moradores –
não escapa da farpa e da virulência: “Se terra tem cu / Belo Horizonte é o cu
das terras”, / Averno oculto / entre as serras, / onde o próprio Belzebu // por
certo, não escaparia / ao riso dissimulado, / ao insulto / disfarçado / de
elogio, à vilania”, que recorda o brado cáustico de Gregório de Matos.
Novos modelos, livro mais recente de Ricardo Aleixo, publicado em
2010, apresenta surpresas já no projeto gráfico – desde a bela capa, que
reproduz a “fotografia digital (que assume diferentes formas) de objeto
construído com linhas de costura de diversas cores”, como esclarece o autor em
nota no final do volume, até a “releitura, com verniz aplicado, de poema-lema
produzido originalmente como um adesivo” nas “orelhas” do livro (“Tem que ter
palavra para ser humano”, de evidente ambiguidade referencial). A visualidade
está presente em poemas como 11 passos
para Merce Cunningham, composto de uma série de desenhos abstratos, ao modo
de variações, feitos com tinta acrílica sobre papel fotográfico.
O desfazimento das palavras – e
portanto do sentido – acontece também no díptico Real / irreal, em que uma única frase – “o real realiza o irreal” é
repetida em sequências que deformam palavras, sílabas e letras, até
convertê-las em manchas ou ruídos gráficos. Em outras composições desta seção
do livro, o autor apresenta novos labirintos-enigmas, como Babeladormecida, Einstein remix e Solo, que exploram possibilidades combinatórias e rotas de leitura
– recursos evidentes também no poema em prosa Cabeça de serpente (“a serpente morde a
própria cauda. a serpente pensa que morde a própria cauda. a serpente apenas
pensa que morde a própria cauda. a serpente morde a própria cauda que pensa.”)
e no labirinto de versos que constroi nos poemas Tempo e Errata, em que as
mesmas frases e palavras são distribuídas, nas duas peças, em diferentes
sequências e combinações.
Um ano entre os humanos, nome
de uma performance poético-musical apresentada por Ricardo Aleixo, é também o
título de um interessante poema em prosa incluído no volume, construído por uma
sequência de perguntas irônico-incisivas que, é claro, prescindem de respostas:
“Você beberia sangue humano? A filha da Madonna é humana? (...) A Barbie é
humana? Você acreditaria se lhe
dissessem que Michael Jackson, quando bebê, tinha feições humanas? (...)
Charles Darwin era humano? (...) Prisioneiros iraquianos arrastados por
coleiras são humanos? (...) Você é humano?”.
Notáveis também são os
autorretratos do poeta, distribuídos ao longo do volume, elaborados com câmera
digital e produzidos em seu “laboratório-casa” – montagens inusitadas de
letras, luzes, perfis e sombras, que nos fazem pensar nos artistas da vanguarda
russa da década de 1920, como Ródchenko. Todos estes poemas – e o livro não se
resume a esse breve elenco de inventos – situam Ricardo Aleixo não apenas entre
os poetas identificados com a poesia visual e o experimentalismo, mas também no
campo do neobarroco, entendido aqui
como a ampla teia de autores que, desde a década de 1970 até os dias atuais –
pensemos em Severo
Sarduy , José Kozer, Nestor Perlongher, Coral Bracho, Victor
Sosa, Reynaldo Jiménez – reelaboraram influências da poesia barroca do Século
de Ouro, à luz da tradição da modernidade. Todos os rótulos, é evidente, são
úteis para a compreensão e discussão de aspectos temáticos ou formais de um
autor ou geração literária, sem a pretensão de esgotar as chaves
interpretativas. No caso de um grande poeta, como é o caso de Ricardo Aleixo,
os rótulos colaboram para iluminar, parcialmente, momentos de transformação de
uma escrita camaleônica, rara e necessária ao nosso tempo.
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