INSTANTES QUE CABEM OU CAEM
(excertos)
Metáfora: Golpes espessos em vasos de barro. Eis a nova argila. Úmida lembrança de um crime perfeito. Cresce a vestimenta, roupa do espírito. Carne do imaterial. Jamais falsificar o medo.
Todas as laranjas cortadas sobre a mesa.
E eu, a descascar maçãs antes que o filme acabe.
Monolito: ovo apertado na mão. Gelado que escorre pelo canto de dentro do braço. Grade atravessada na garganta. Quadrado preto no meio da sala. O mesmo de antes, o mesmo que nunca vi.
Feito: costura de retalhos. Chão sujo de fiapos, retirar o que não é composição. Som de corte na mesa, risca de giz, alinhavar e soltar. Partir em carreira, marca do café sob o papel.
Qual o instrumento, qual o instrumento que acontece uma mulher ? Ser, até na dobra dos joelhos. Até aonde o peito voa. Ser, na mesa pequena, toalha quadriculada, no pote de manteiga, faca equilibrada e saco de pão amassado. Colecionar tentáculos. Afiar o corte da manhã. Ser, para reagir, mesmo a um custo,
Até traçar a rota e amassar as uvas:
35 doses de rum, Claire Dennis
Pai e filha, Yasujiro Ozu
Nikita, Luc Bresson
O profeta, Jacques Audiard
White material, Claire Dennis
Até estancar o fim.
Poesia: há um momento em que a vida tem um sentido insuportável: um estado de profundo excesso. O corpo ocupa o seu lugar e o campo continua guardando o sol e a noite. Lucidez depois da chuva, engrenagem nova, ligação inesperada e clara. Certa vez ganhei uma caixinha pequena com uma jóia dentro. Aquela imagem de que se guarda algo a mais do que ela mesma e por isso adquire seu último estado de beleza não me sai da cabeça. Saber que se guarda algo a mais e, no entanto, trazer em si a sobra, que se desdobra porque contém. Sobra: palavra de poesia. Estado poético e poesia: ocupação dos cantos da casa, da palavra e do corpo. Busca de pontos cegos, comprometimento com o que se vê depois da visita da verdade. Condensação, convite ao desdobramento. É sagrado porque é intermitente, entra e sai quando quer. Último passo para a fusão total, ultimo momento antes de descer rio abaixo. Aqui não habita a análise combinatória ou a arrumação de dados. Fundação. Fundição, Casa de Solda. Amálgama. Corpo gasto em outro corpo gasto. Guardião de um único sim.
Última cena do filme A Partida: escrever poesia é aquele momento exato de poder dizer: eu posso, eu posso preparar o enterro do meu próprio pai, preparei-me a vida toda para isso.
Na costura dos silêncios, recebe-se a missão de ser poeta.
Aceita-se ou não.
Poema de Angela Castelo Branco.
"é como uma grande aleluia" - parabéns, parabéns, parabéns
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