terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXIV)


SAPHO


A Sophia, à Dora


“... e perto dos templos derruídos,

a respiração do velho Mar...”

(Dora Ferreira da Silva, Hídrias)



Cabeça amendoada inclino-me ao seio

festejo silêncio e brecha

vento abrindo o véu que o guardava

pende o tecido em oferenda e eu

inclino-a e acendo

um riso ensimesmado



o que perturbaria?

o colar de ouro o colo

cravejado com juras e sinais

a serpente aninhada ao pulso

o gesto de estar

sedutoramente para dentro

sentada neste penhasco e tendo

a calda do tecido ventando em mim –

o mar

satisfeito



com lira ao lado

a antiga tartaruga de Hermes

o gozo fundo de Apolo,

Sapho



faixa nos cabelos, prensas

fivelas a deixar livre o pendor

de tecer sobre os ombros

costas delicadas seios

um coração dependurado em cada

escuta, e é em ti que movo

mar amante



dentro de mim entregue refeito

apareço a sorrir – e olho-te

não vês que olho



e diretamente só olho a ti



(ao redor da estátua

Outra mulher sedenta do contato

– primeiros olhos de ressaca –

fixa taxativa, a negação aos visitantes:

o pólen de guardar o tempo, dentro de caixas

brancas e ameaças

as substâncias incólumes

o interdito do tato

a macular as estátuas)





o rosto um triângulo

os cabelos trigais adocicados

e é em mim que me chamo

chamando-te mar

amante

leda mão absolutamente

em concha

sabe o fim das pernas

coleadas em mel, hastes

de vime e vinha, urna ritualística

do desejo



ser este poço em perfeita calma

culminada de estratégia e de perícia

címbalo convulsivo, pedraria alva

serpente em riste a untar um pulso

antes ou depois de cantar

antes ou depois que cante

canto azul marinho, pinheirais, distância

e clara



repousa a natureza a satisfazer-me em sono



repleta de iguarias

o olhar marmóreo o busto

ao contrapelo do tangível

lira cornucópia de um couro

exposto e esconso

feito para ti e de ti oculto



são sete as cordas da lira

e o labirinto no casco que

o colcheio do som abriga



invento

um rio com apenas este gesto

uma inclinação de cabeça, um Tejo

este aprumo de puro arder



estrondo mortalmente silencioso

dedico-te ou me olho

ao busto meu levemente ácido

no vento alto desta falésia

não saberás?



tem ainda a lira Dioniso

seus cachos rugidos escorrendo

pela lateral do leste



ergue firme mão direita e circunda

a taça a qualquer imagem que voe

e agrada sentar-se ali nos despojos

de uma cria de pantera, homens e mares

junto à mão, a taça

à cintura, dentro dela

bebendo

o pássaro entusiasmado



é esta a pureza das pombas



curvar-se alta para o poço

do que impele Baco

atrás de ti, Sapho

de mim, à frente

desmembrada a querela dos triângulos

nas noites quentes longas afiadas

nus em bosque indistinto

e sagradas



a taça de Dioniso o ventre

de Sapho a lira

de uma noite

inquebrantável



protejo, projeto, não saberás

se ajeito os olhos no colo do firmamento

ou se fito quão longe do mar

o repouso agitado de teus membros



não saberás, tenho os olhos claros



e este declive em minha face



enlaça dedicada maneira

de entoar a lira com a lira

deitada ao lado


Roberta Ferraz nasceu em São Paulo, em 1980. Estudou Letras na PUC-SP e História na USP. Publicou em 2003 seu primeiro livro, de contos, Desfiladeiro, pela Editora Nativa. É mestre em Literatura Portuguesa, pela USP. Ganhou em 2008, na categoria Texto, o prêmio do Programa Nascente da USP, com seu livro lacrimatórios, enócoas, publicado em 2009 pela Oficina Raquel. Publicou também, com Érica Zíngano e Renata Huber, o livro fio, fenda, falésia, com apoio do ProAc 2009.

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