SAPHO
A Sophia, à Dora
“... e perto dos templos derruídos,
a respiração do velho Mar...”
(Dora Ferreira da Silva, Hídrias)
Cabeça amendoada inclino-me ao seio
festejo silêncio e brecha
vento abrindo o véu que o guardava
pende o tecido em oferenda e eu
inclino-a e acendo
um riso ensimesmado
o que perturbaria?
o colar de ouro o colo
cravejado com juras e sinais
a serpente aninhada ao pulso
o gesto de estar
sedutoramente para dentro
sentada neste penhasco e tendo
a calda do tecido ventando em mim –
o mar
satisfeito
com lira ao lado
a antiga tartaruga de Hermes
o gozo fundo de Apolo,
Sapho
faixa nos cabelos, prensas
fivelas a deixar livre o pendor
de tecer sobre os ombros
costas delicadas seios
um coração dependurado em cada
escuta, e é em ti que movo
mar amante
dentro de mim entregue refeito
apareço a sorrir – e olho-te
não vês que olho
e diretamente só olho a ti
(ao redor da estátua
Outra mulher sedenta do contato
– primeiros olhos de ressaca –
fixa taxativa, a negação aos visitantes:
o pólen de guardar o tempo, dentro de caixas
brancas e ameaças
as substâncias incólumes
o interdito do tato
a macular as estátuas)
o rosto um triângulo
os cabelos trigais adocicados
e é em mim que me chamo
chamando-te mar
amante
leda mão absolutamente
em concha
sabe o fim das pernas
coleadas em mel, hastes
de vime e vinha, urna ritualística
do desejo
ser este poço em perfeita calma
culminada de estratégia e de perícia
címbalo convulsivo, pedraria alva
serpente em riste a untar um pulso
antes ou depois de cantar
antes ou depois que cante
canto azul marinho, pinheirais, distância
e clara
repousa a natureza a satisfazer-me em sono
repleta de iguarias
o olhar marmóreo o busto
ao contrapelo do tangível
lira cornucópia de um couro
exposto e esconso
feito para ti e de ti oculto
são sete as cordas da lira
e o labirinto no casco que
o colcheio do som abriga
invento
um rio com apenas este gesto
uma inclinação de cabeça, um Tejo
este aprumo de puro arder
estrondo mortalmente silencioso
dedico-te ou me olho
ao busto meu levemente ácido
no vento alto desta falésia
não saberás?
tem ainda a lira Dioniso
seus cachos rugidos escorrendo
pela lateral do leste
ergue firme mão direita e circunda
a taça a qualquer imagem que voe
e agrada sentar-se ali nos despojos
de uma cria de pantera, homens e mares
junto à mão, a taça
à cintura, dentro dela
bebendo
o pássaro entusiasmado
é esta a pureza das pombas
curvar-se alta para o poço
do que impele Baco
atrás de ti, Sapho
de mim, à frente
desmembrada a querela dos triângulos
nas noites quentes longas afiadas
nus em bosque indistinto
e sagradas
a taça de Dioniso o ventre
de Sapho a lira
de uma noite
inquebrantável
protejo, projeto, não saberás
se ajeito os olhos no colo do firmamento
ou se fito quão longe do mar
o repouso agitado de teus membros
não saberás, tenho os olhos claros
e este declive em minha face
enlaça dedicada maneira
de entoar a lira com a lira
deitada ao lado
Roberta Ferraz nasceu em São Paulo, em 1980. Estudou Letras na PUC-SP e História na USP. Publicou em 2003 seu primeiro livro, de contos, Desfiladeiro, pela Editora Nativa. É mestre em Literatura Portuguesa, pela USP. Ganhou em 2008, na categoria Texto, o prêmio do Programa Nascente da USP, com seu livro lacrimatórios, enócoas, publicado em 2009 pela Oficina Raquel. Publicou também, com Érica Zíngano e Renata Huber, o livro fio, fenda, falésia, com apoio do ProAc 2009.
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